Vamos com calma, ainda temos para troca umas boas
gargalhadas contra o tom enfatuado da intelligentsia de matilha. Dar com estes brincalhões
pelo caminho é do melhor que pode acontecer a um funcionário cansado no termo
do dia, fica-se vacinado e não há pesporrência que vingue. Haverá melhor
remédio do que desimportantizar, como dizia Alexandre O’Neill? Ou então passar
ao lado, deixar que o olho lírico procure lá-fora-cá-dentro um fenómeno
natural qualquer que nos distrai das bestas. Regra: jamais nos levarmos tanto a
sério quanto merece a vida que a levemos, a bem dos ossos e da saúde mental. Diz
quem sabe que José Sesinando Palla e Carmo (1923-1995) é um bom exemplo, por
ter como Palla e Carmo traduzido alguns dos melhores, assinado ensaios e críticas literárias da
maior seriedade que se possa imaginar. Mas o Sesinando reservou-o para o
literário, um literário feito de riso sobre o próprio literário. Isto é, José
Sesinando, autor de Obra Ântuma (1986),logrou com golpe de mestre desmascarar tudo
o que é cagança, pesporrência, presunção, nesse domínio do literário. Como?
Brincando com os tiques, subvertendo, mostrando que por detrás da seriedade intelectual
há sempre um intelecto que ri. Até da sua própria seriedade. No prefácio a Obra Perfeitamente Incompleta (Tinta-da-China, Junho de 2018), Abel
Barros Baptista coloca as coisas nestes termos: «O humor de José Sesinando
suscita admiração e diverte, mas não aspira leccionar ninguém ainda quando parece
ridicularizar pessoas efectivas ou procedimentos conhecidos. É um humor
linguisticamente endiabrado, como um miúdo travesso a virar as frases ao
contrário para provocar a mãe ou desobedecer ao pai. Travesso e exibicionista»
(p. 8). Fica a ganhar o leitor, quer pelas gargalhadas efectivas que desprende
da leitura, quer por se dar conta da patetice e do ridículo de certos tiques,
técnicas feitas, como as frases, lugares mais que comuns que por serem
repetidos em certo contexto, dito respeitável, passam quase invariavelmente por
respeitáveis. Quando espremido temos, afinal, parra ressequida, uva nenhuma para
vinho idealizado. Somente idealizado.
Já que estamos com a mão na massa, vamos
à obra póstuma à Obra Ântuma: primeiro, 50 variações para o Soneto já antigo de
Fernando Pessoa; segundo, 65 variações para a Autopsicografia do mesmo. E
vejamos em que podemos converter o recado a Daisy num Soneto Enraivecido:
«Raios partam isso! Não suporto a vida! / Vai uma pessoa pela rua, e zás! /
logo lhe aparece uma pessoa conhecida / que nos quebra a nossa interior paz»
(p. 196). Ou como em alternativa ao poeta fingidor podemos ficar com o poeta
sabonete: «O poeta é um sabão / Ou, melhor, um sabonete. / Pode falar em calão,
/ Ler a Bola ou ler o Sete» (p. 291). As variações são para todos os gostos,
vão do nonsense à maneira das Learicks ao humor negro, da auto-ironia à sátira
mais mordaz. E dizê-lo parece já palerma, que é um eufemismo de realmente
o ser. Porque esta obra é toda ela um recado à crítica, como que impossibilita uma leitura que não seja de facto lida. Bom, bom, bom, mesmo bom, é ir lendo a Obra Ântuma acompanhando a nótula
de abertura do autor, as palavras prévias de José Palla e Carmo (que é o
autor), a advertência de Archibaldo Th. Leonardes (adivinhem quem é toda esta
gente?) —
«José Sesinando, se não deixará, como Fernando Pessoa, uma ou duas arcas cheia
de manuscritos inéditos, admite todavia a hipótese de nos legar trinta e quatro
caixas de fósforos, que já mostrou ao signatário desta nota. Dezanove delas
contêm fósforos; mas nas outras quinze, muito bem dobrados, encontrámos até
agora os borrões de muitos poemas, ensaios, sabemos lá que mais. Alguns estão
ainda por desdobrar: disso foram encarregados dois grupos de trabalho e três
grupos de repouso» (pp. 23-24) —, o prefácio de L. I. G. Leonardes
Júnior, o interfácio de José Ramos — «foi ele, até hoje, o único poeta a
fazer uso deliberado (e não acidental) da gralha tipográfica (que,
consequentemente, não era-o)» (p. 73) —, o posfácio de Christina Leonardes —
«Mal sabia eu, quando conheci José Sesinando, que este, literariamente, tendo
partido do nada, acabaria no zero» (p. 165).
Sobre a obra propriamente dita,
temos textos em prosa sobre música, moda, a grandeza dos países europeus ,
circulares, entrevistas, um manifesto, entre outros, como agora se diz. Há uma imperdível Breve introdução a uma
teoria dos $ímbolos$ da riqueza. Atenção às notas de rodapé: «Rica será a
família cujo chauffeur tenha chauffeur» (p. 47). Da poesia, muito haveria a
dizer não tivesse já tudo sido dito nos próprios poemas. São inúmeros os envios, todos sem rancor.
Como este do autor (José Sesinando) para si mesmo (na versão José Palla e
Carmo): «O crítico Zé Palla é pedante — / cita sempre toda a sua estante. /
Julga ser exacto / mas é só um chato: / faz sono antes, depois e durante. / Não
é lima-rica, mas sim um» (p. 135). Complete o leitor, se tiver vontade. Ou conseguir.
4 comentários:
cartomante :)
Boa.
farsante
Nuno
pinante
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