sexta-feira, 30 de novembro de 2018

OBRA PERFEITAMENTE INCOMPLETA


Vamos com calma, ainda temos para troca umas boas gargalhadas contra o tom enfatuado da intelligentsia de matilha. Dar com estes brincalhões pelo caminho é do melhor que pode acontecer a um funcionário cansado no termo do dia, fica-se vacinado e não há pesporrência que vingue. Haverá melhor remédio do que desimportantizar, como dizia Alexandre O’Neill? Ou então passar ao lado, deixar que o olho lírico procure lá-fora-cá-dentro um fenómeno natural qualquer que nos distrai das bestas. Regra: jamais nos levarmos tanto a sério quanto merece a vida que a levemos, a bem dos ossos e da saúde mental. Diz quem sabe que José Sesinando Palla e Carmo (1923-1995) é um bom exemplo, por ter como Palla e Carmo traduzido alguns dos melhores, assinado ensaios e críticas literárias da maior seriedade que se possa imaginar. Mas o Sesinando reservou-o para o literário, um literário feito de riso sobre o próprio literário. Isto é, José Sesinando, autor de Obra Ântuma (1986),logrou com golpe de mestre desmascarar tudo o que é cagança, pesporrência, presunção, nesse domínio do literário. Como? Brincando com os tiques, subvertendo, mostrando que por detrás da seriedade intelectual há sempre um intelecto que ri. Até da sua própria seriedade. No prefácio a Obra Perfeitamente Incompleta (Tinta-da-China, Junho de 2018), Abel Barros Baptista coloca as coisas nestes termos: «O humor de José Sesinando suscita admiração e diverte, mas não aspira leccionar ninguém ainda quando parece ridicularizar pessoas efectivas ou procedimentos conhecidos. É um humor linguisticamente endiabrado, como um miúdo travesso a virar as frases ao contrário para provocar a mãe ou desobedecer ao pai. Travesso e exibicionista» (p. 8). Fica a ganhar o leitor, quer pelas gargalhadas efectivas que desprende da leitura, quer por se dar conta da patetice e do ridículo de certos tiques, técnicas feitas, como as frases, lugares mais que comuns que por serem repetidos em certo contexto, dito respeitável, passam quase invariavelmente por respeitáveis. Quando espremido temos, afinal, parra ressequida, uva nenhuma para vinho idealizado. Somente idealizado. 
Já que estamos com a mão na massa, vamos à obra póstuma à Obra Ântuma: primeiro, 50 variações para o Soneto já antigo de Fernando Pessoa; segundo, 65 variações para a Autopsicografia do mesmo. E vejamos em que podemos converter o recado a Daisy num Soneto Enraivecido: «Raios partam isso! Não suporto a vida! / Vai uma pessoa pela rua, e zás! / logo lhe aparece uma pessoa conhecida / que nos quebra a nossa interior paz» (p. 196). Ou como em alternativa ao poeta fingidor podemos ficar com o poeta sabonete: «O poeta é um sabão / Ou, melhor, um sabonete. / Pode falar em calão, / Ler a Bola ou ler o Sete» (p. 291). As variações são para todos os gostos, vão do nonsense à maneira das Learicks ao humor negro, da auto-ironia à sátira mais mordaz. E dizê-lo parece já palerma, que é um eufemismo de realmente o ser. Porque esta obra é toda ela um recado à crítica, como que impossibilita uma leitura que não seja de facto lida. Bom, bom, bom, mesmo bom, é ir lendo a Obra Ântuma acompanhando a nótula de abertura do autor, as palavras prévias de José Palla e Carmo (que é o autor), a advertência de Archibaldo Th. Leonardes (adivinhem quem é toda esta gente?) «José Sesinando, se não deixará, como Fernando Pessoa, uma ou duas arcas cheia de manuscritos inéditos, admite todavia a hipótese de nos legar trinta e quatro caixas de fósforos, que já mostrou ao signatário desta nota. Dezanove delas contêm fósforos; mas nas outras quinze, muito bem dobrados, encontrámos até agora os borrões de muitos poemas, ensaios, sabemos lá que mais. Alguns estão ainda por desdobrar: disso foram encarregados dois grupos de trabalho e três grupos de repouso» (pp. 23-24) , o prefácio de L. I. G. Leonardes Júnior, o interfácio de José Ramos «foi ele, até hoje, o único poeta a fazer uso deliberado (e não acidental) da gralha tipográfica (que, consequentemente, não era-o)» (p. 73) , o posfácio de Christina Leonardes «Mal sabia eu, quando conheci José Sesinando, que este, literariamente, tendo partido do nada, acabaria no zero» (p. 165). 
Sobre a obra propriamente dita, temos textos em prosa sobre música, moda, a grandeza dos países europeus , circulares, entrevistas, um manifesto, entre outros, como agora se diz. Há uma imperdível Breve introdução a uma teoria dos $ímbolos$ da riqueza. Atenção às notas de rodapé: «Rica será a família cujo chauffeur tenha chauffeur» (p. 47). Da poesia, muito haveria a dizer não tivesse já tudo sido dito nos próprios poemas. São inúmeros os envios, todos sem rancor. Como este do autor (José Sesinando) para si mesmo (na versão José Palla e Carmo): «O crítico Zé Palla é pedante / cita sempre toda a sua estante. / Julga ser exacto / mas é só um chato: / faz sono antes, depois e durante. / Não é lima-rica, mas sim um» (p. 135). Complete o leitor, se tiver vontade. Ou conseguir.