segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

OUTRO NOME PARA A SOLIDÃO


Duas partes compõem Outro nome para a solidão (Douda Correria, Novembro de 2018), de Cláudia R. Sampaio (n. 1981): Hospital, a primeira, e Outro nome, a segunda. À excepção de um poema, não há títulos a separarem os textos. É como se integrassem uma narrativa da qual vamos colhendo sugestões. A dedicatória à mãe permite supor uma dimensão afectiva nos versos acerca da qual não pretendo especular. Para o leitor, não é de todo o mais relevante. Mas há um verso que não passa despercebido: «Quero chorar, merda, não consigo». Quem escreve um verso destes sabe que corre riscos, é um verso literal, visceral, expõe a emoção em estado bruto, como uma ferida aberta na qual se vê o sangue a escorrer. Podíamos julgar que melhor seria disfarçar com metáforas o espinho da emoção, embelezar o discurso com rendilhados que camuflassem a dor. Mas a poesia de Cláudia R. Sampaio não se coaduna com semelhantes disfarces, assume a sua função catártica sem temer a exposição, sem medo de ferir, provocando no leitor processos de distanciamento ou de identificação: «Estou indecisa entre fumar ou morrer / Não sinto o corpo, talvez fumar seja mais difícil».
O eu escutado nestes versos desintegrou-se, não é ser único, fechado sobre si mesmo, resulta da comunhão onde a ferida germina, como um feto a desenvolver-se na placenta. Então temos uma mulher, uma emergência, uma ambulância, as camas do hospital, uma interrogação: «Guarda-me este segredo que tenho largo por baixo dos cabelos: / - quanto de mim fui que não vivi / quanto em ti é que fui eu?» Pode ser um parto, pode ser uma despedida, pode ser o parto de uma despedida, a morte a ser parida. Pathos e catarse são as faces de um mesmo procedimento que sustenta o poema enquanto manifestação urgente de uma experiência traumática. Intuímos alguma necessidade de recolhimento na segunda parte deste livrinho, curto e intenso. Do recolhimento surdem fogachos existenciais, a relativização dos problemas universais, um olhar distinto, mais focado nas pequenas coisas.
É lidando com a morte que se aprende a valorizar as pequenas coisas. Elencam-se “as pequenas coisas”, desenha-se a paisagem, respira-se no e com o poema, sublinha-se o desalinho persistente: «Como é bom saber que por aqui todos estão vivos / ignorando a minha dificuldade em escolher maçãs». Este é o sentido que nos aproxima do absurdo, tal como foi pensado pelos existencialistas do século passado. O absurdo é o peso da morte sobre os gestos, intromete-se no respirar e, por consequência, na acção. A solidão é a condição existencial, quer estejamos no “café do bairro” ou deitados numa cama vazia.
O penúltimo poema dialoga claramente com Herberto Helder, que vem citado em epígrafe no início do livro: «Uma mulher muito inclinada pela noite» (…), «Uma mulher longa até ao fim do tempo» (…), «a mulher anda sobre o fogo que grita» (…), «Tudo parece ser outra coisa / uma ideia de amor desencontrado na memória / uma parede aberta para o infinito». Sabemos como a mulher-mãe figura na poesia de Herberto, acompanhada de uma ambígua nuvem de ausência, corpo físico distante, memória presente. É central, ou seja, é essencial. Neste pequeno conjunto de poemas assinados por Cláudia R. Sampaio ela parece assumir semelhante posição, semente transformada em fruto, fruto desfeito em húmus, de novo semente. Simples como as pequenas coisas.
O que há de belo nesta catarse transcende a capacidade de compreensão, resiste a qualquer vontade de racionalizar. É fundamentalmente emoção, desordem, caos interior. Do lado oposto à sobriedade, mas não resvalando num mero fogo-de-artifício vocabular e imagético, porque antes de mais é o corpo quem fala nestes poemas, Outro nome para a solidão desassossega e inquieta, coloca-nos sobre as brasas do que realmente importa: «No lugar do corpo: uma flor / Em vez de sentir: o vento / Que a morte seja real / com tudo isto escrito». As ilustrações são também da autora dos poemas. É, até à data, o meu livro preferido de Cláudia R. Sampaio.

1 comentário:

jonesy disse...

Muito interessante e boa de ler esta tua leitura do livro. E os versos destacados são pujantes. Abraço.