domingo, 13 de janeiro de 2019

CRUZES


Entre os mais enigmáticos livros de poesia portuguesa publicados em 2018 conta-se Cruzes (Alambique, Outubro de 2018), de Ricardo Tiago Moura (n. 1978), autor acerca do qual tudo quanto sei me é informado por Enfermaria 6: «Publicou os livros Um gato para dois (Hariemuj, 2013), Epístolas a D. (não edições, 2013), Espaço aéreo (Arqueria, 2014 - Brasil) e pequena indústria (Tea for One, 2016). Tem publicado dispersamente poemas em revistas e antologias. Dedica-se também à colagem. Vive em Køge, Dinamarca.» Do último dos livros mencionados, o qual me revelou uma voz incomum, partilhei aqui um poema. O título do livro mais recente faz uso de uma palavra com forte carga simbólica. A cruz ocupa lugar especial na tradição judaica e cristã, que é a nossa, simbolizando o filho de Deus na Terra. Neste sentido, a cruz é Verbo, sinal de intersecção dentre Céu e Terra, símbolo da intermediação que reúne espaço e tempo. Ao lermos os poemas de Ricardo Tiago Moura estas questões não se colocam senão de um ponto de vista pretensioso, carente de sentido, empenhado em encontrar significação para os espaços vazios deixados por uma linguagem fortemente elíptica. Os poemas são mínimos, tendem para o nulo, para o vazio, para o branco: «página a página / escrever branco» (p. 39). No entanto, deixam-nos intrigados. 
   Ao nível da linguagem, é evidente a opção pelos verbos e pelos substantivos, em detrimento dos adjectivos. Estes são raríssimos. O uso gráfico recorrente dos dois pontos suspende a voz, anuncia inflexões discursivas, desloca-nos para momentos de anunciação que remetem o poema para um lugar de definição indefinida. Estas definições não são claras, como que nos introduzem através de fragmentos num universo com as suas personagens particulares (artista, colaboradores, homem-palhaço, mãe, velho, dona-de-casa, ladrão, rapaz, idosa, vizinhas, fantasma…) em situações descritas com parcimónia, gestos simples que o poema esculpe até ao detalhe: «velho zurzindo / junto dos vasos / promete juntar / paus desavindos / sabe esperar / botões inteiros // não regar / a tempo / cada canteiro: // cavar fundo / todos os dias:» (p. 11). 
   Aparentemente ausentes, as emoções parecem ter sido expurgadas dos versos com intuito preciso: demarcar o campo de uma paisagem onde a intimidade do sujeito se cruza com o outro que lhe é exterior, mas com o qual está em relação. Este carácter fenomenológico dos poemas não deixa de transparecer a condição existencial do sujeito através do emprego de termos tais como solidão e medo. A rasura, radicalmente exposta em versos riscados (páginas 26, 28, 30, 36), é aqui um tratamento de expurgação tal como a poda o é para a jardinagem, resultando por vezes a prática em exercícios líricos bastante sedutores: «escolher um homem / dobrar em quatro / rasgar em oito: / guardar» (p. 33). Outro exemplo, desta feita enviando-nos para algo mais próximo do haiku japonês: «lavar janelas: / limpar o sol / pelo lado / de dentro» (p. 34). 
   Mas a poesia de Ricardo Tiago Moura não está especialmente interessada em cativar o leitor pela beleza das imagens suscitadas, ela antes cativa pelo seu poder sugestivo, pelo modo como ao ser assinada de cruz deixa o leitor perante a indefinição da identidade, pela capacidade que denota de através de intersecções subtis nos colocar no centro de um universo particular. Esta política do mínimo, pautada por silêncios bem ilustrados pelo dístico final «pequena política: / dizer: não dizer» (p. 40) , adensa a curiosidade, coloca-nos num espaço de silêncio que contrasta com a tagarelice e a verborreia tão comuns em grande parte da poesia actualmente publicada. Quando o poema se alonga abre-se a porta ao jogo de reflexos, luz e sombra, espaço e tempo, primeira e segunda pessoas aparecem num cruzamento de modos que traduz a natureza desse símbolo máximo da transversalidade, ou seja, do ser que entronca noutro ser, do encontro do diverso, da revelação do dual que existe no uno. E tudo parece existir em função apenas dos dois últimos versos, como as raízes em função da copa:  

no princípio do rio
que nos é mais próprio
pouco se sabe do caudal:
o tempo corre pela margem
o tempo todo:                            superfície-plasma
                                                  água-de-ecrã
no princípio do rio
duas sombras sabem
serem a mesma                        não-sombra ou não-imagem
no princípio
que nos é mais próprio
estamos eu / tu                           de perfil estudado:
               e a nossa sombra        ou a nossa ausência
somos eu / sombra
propriedades do solo
se assim o soubermos:

               sombra que faz o sol
               no princípio do rio:
                                                        duas sombras
                                                        acreditam melhor

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