quinta-feira, 11 de abril de 2019

A VIDA QUOTIDIANA EM TABLÓIDE


[À porta do meu Banco no patamar, acocorados]

À porta do meu Banco no patamar, acocorados,
um e uma, vendem a pele
de uns pratos encardidos
mesmo no traço que já lhes deu flores garridas.
Eles escorriam chuva, que chovia, para a louça.
Eles nem devem ter sangue pela tez lustrosa
da porcelana dos seus olhos de caveira.
(Até faz rir, leitor, coisa tão triste.)


[Nos corredores das lojas a passear, lá em cima]

Nos corredores das lojas a passear, lá em cima,
arrasta um calçado encharcado,
um saco plástico que verte.
Quando lhe tocam, sujam-se,
mais rápidos caminham fazendo um esgar doentio.
Não tardará que o homem de farda lhe indique a
saída.


[Uma mania, a de andar de olhos no chão]

Uma mania, a de andar de olhos no chão,
Deus esta noite resultado.
Entre baldes do lixo, pequeno como um rato, a minha filha
encontrou o que diz ser
uma gatinha.
Velho de alguns anos, o nosso gato,
que eu penso que ela julga solitário, recebeu-a mal.
(Disse a toda a família que o castramos
e que somos agora a sua fêmea.)


[Vestindo tão de luto como quando o enterraram]

Vestindo tão de luto como quando o enterraram,
a Senhora que o conheceu dava generosa tristeza aos Cristos
alinhados como velas em bolo.
(Cristo de
noiva, a tradição.)
Imperfeitos uns, outros polidos, alguns mais corroídos.
Régio comprou por devoção, à dúzia, e vendeu-os bem.

Deus está atento, já
voltaram para ele,
para o seu nome.


[Lanço o homem à minha frente para a vala]

Lanço o homem à minha frente para a vala?
Que hei-de dizer? Que é da doença.
A cabeça um cacho, a uva grossa já mosto, mas
terá uma forma de cérebro?
(Até a noz a tem.)
Boas maneiras, bilhete de identidade, contribuinte, gravata.
E pouco mais terá de humano, no manual
que dizem? (dlim, dlão).


[Durante toda a noite e dia]

Durante toda a noite e dia
as pancadas penosas do vizinho
nas paredes acolchoadas que o envelheceram. Queixava-se.
Agora espreito-o desta maneira. Mais tarde eu,
(Sob a penugem negra do receio, sonâmbulo,
com estranheza de me ver, mais tarde,
em qualquer espelho.)
em qualquer espelho que nos rodeia, no tédio.


[Primeiro passa a mulher empinando de grávida, com toucado]

Primeiro passa a mulher empinando de grávida, com toucado.
Depois uma criança rosa, que é da melhor carne da perna.
Por fim, muito estafado, franzino e roxo de ferrugem,
um homem que se senta e pede um copo de café e leite.
Desejo-os a todos.
À mulher prazenteira pelos filhinhos, a ele
como a um brinquedo.


[Um fio de mar, parece-me, inclinava a terra]

Um fio de mar, parece-me, inclinava a terra
num poço de luz silenciosa.
O vulto que chegou de motorizada pela mão
esconde as dunas, a vaguear com a madeira torcida
que encontrou. Esconde-se de si, todos o vêem.
Ouvimos rádio, o guiador colado ao jornal,
os joelhos afastados; ali uns outros num carro sem ruído.
Com a boca ranhosa diz palavrões,
mostra-se e afasta-se.


José Emílio-Nelson (n. 1948), do livro O Anjo Relicário (1999), in A Alegria do Mal (2004). «Nada melhor do que a poesia de José Emílio-Nelson para sujeitarmos às mais duras provas a boa ou má consciência do gosto literário. Poesia do feio e do mal, ela tem sido, desde Polifonia e Penis, Penis, livros de 1979 e 1980, um atentado constante às normas do bom senso e do bom gosto, só ilusoriamente banidas da República literária com a iconoclastia dos modernistas. Os seus poemas atormentados e contorcidos são a prova flagrante de que o gosto, bom ou mau, é uma hidra de mil cabeças com a aparência do diabo nos seus mil e um disfarces. (...) O que agride nesta poesia é a extrema paixão da sensibilidade, nas notações do monstruoso quotidiano, sem os espelhos correctivos que tornam invisíveis as partes malditas do real. Toda a visão da fealdade é uma fidelidade da visão: quando o feio está invisível, encontra-se algures escondido atrás de uma aparência de beleza. Ver o feio é ver a nudez em toda a sua pureza, por mais impura que aparente ser» (Luís Adriano Carlos, in Fisiologia do Gosto Literário, introdução a A Alegria do Mal).

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