sexta-feira, 26 de abril de 2019

APRENDIZ


   Uma nota no final de Aprendiz (Volta d’Mar, Fevereiro de 2019) dá conta dos lugares e do período de incubação dos poemas, assim como de um processo criativo que de algum modo estabelece contacto com as obras de outros autores. Os títulos terão sido pedidos de empréstimo, embora não fique claro o tipo de relação estabelecida entre esses títulos e o conteúdo dos poemas. Claro é que na poesia de manuel a. domingos (n. 1977) encontramos desde sempre uma economia verbal  que tanto evita o artifício como aposta num esvaziamento a tender para espaços silenciosos, o que a aproximaria de certa poesia oriental, pelo menos na forma, não fossem outras as premissas culturais segundo as quais se rege.
   O sujeito poético e o outro cruzam-se nestes poemas, por vezes confundem-se sem se anular. Dedicado ao pai falecido, Aprendiz deixa-se ainda tocar pelo tema da morte com uma impressionante capacidade de síntese emotiva:

A MORTE

A morte não é uma flor
é o meu pai nos Cuidados Paliativos
Eu a fazer-lhe a barba

pela última vez
E no final: o seu sorriso

   Por aqui se afere a capacidade revelada de resumir uma perspectiva acerca de um tema desde sempre central. Como noutros poemas, o tema surge subentendido numa acção, num gesto revelador da essência daquilo que se procura compreender. 
   Podemos ainda apontar uma tendência aforística cirurgicamente trabalhada através do recurso a poucas mas centrais palavras, as bastantes para que o tema se esclareça, a paisagem se descreva, a observação se consubstancie. O gato é a personagem mais recorrente em poemas cuja paisagem se revela essencialmente urbana, sendo possível vislumbrar na sua presença uma espécie de resquício natural em contexto adverso à Natureza. Mas o gato é também companhia e, enquanto tal, manifestação de uma certa solidão, de um certo isolamento, ou recolhimento, que o sujeito faz transparecer por interposta figura. 
   Há igualmente uma face lúdica nestes apontamentos que não pode ser descurada:

SONETO CONTRA AS PESPORRÊNCIAS

A cada poeta
o lugar-comum
que merece:
uma veia aberta

pelo sopro
uma aresta de luz
rente ao nervo
ou até Deus

e a sua infinita
misericórdia
O meu é esta mesa

onde todos os dias
bebo o mesmo café
de sempre

   Entre as diversas cenas quotidianas sobressaem, por vezes, erupções emotivas que apontam para o cansaço, para a melancolia, para uma certa desilusão. Talvez exista nesta via uma busca da simplicidade, do desapego, uma atitude poética que tenta organizar em breves e depurados retratos a experiência directa dos dias na cidade. A característica fundamental é a recusa da figura do poeta enquanto mestre, ele coloca-se no lugar do aprendiz que observa e da observação tentar obter uma certa forma de conhecimento. Num outro livro do autor, intitulado Teorias (2011), já tínhamos percebido a sua desconfiança perante as grandes elaborações de um discurso filosófico meramente racional, desligado da experiência, mas sobretudo a desconfiança de uma poesia eloquente e exageradamente verborreica. manuel a. domigos escreve contra o excesso, escreve a favor de uma humilíssima consciência do lugar que todos nós ocupamos no mundo, escreve a favor de uma aprendizagem continuada da vida, sem qualquer necessidade de impor lições ou de estabelecer uma qualquer axiomática do saber poético.

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