Uma nota no
final de Aprendiz (Volta d’Mar, Fevereiro de 2019) dá conta dos lugares e do
período de incubação dos poemas, assim como de um processo criativo que de
algum modo estabelece contacto com as obras de outros autores. Os títulos terão
sido pedidos de empréstimo, embora não fique claro o tipo de relação
estabelecida entre esses títulos e o conteúdo dos poemas. Claro é que na poesia de
manuel a. domingos (n. 1977) encontramos desde sempre uma economia verbal que tanto evita o artifício como aposta num
esvaziamento a tender para espaços silenciosos, o que a aproximaria de certa
poesia oriental, pelo menos na forma, não fossem outras as premissas culturais segundo
as quais se rege.
O sujeito
poético e o outro cruzam-se nestes poemas, por vezes confundem-se sem se
anular. Dedicado ao pai falecido, Aprendiz deixa-se ainda tocar pelo tema da
morte com uma impressionante capacidade de síntese emotiva:
A MORTE
A morte não é uma flor —
é o meu pai nos Cuidados Paliativos
Eu a fazer-lhe a barba
pela última vez
E no final: o seu sorriso
Por aqui se afere
a capacidade revelada de resumir uma perspectiva acerca de um tema desde sempre
central. Como noutros poemas, o tema surge subentendido numa acção, num gesto
revelador da essência daquilo que se procura compreender.
Podemos ainda apontar
uma tendência aforística cirurgicamente trabalhada através do recurso a poucas
mas centrais palavras, as bastantes para que o tema se esclareça, a paisagem se
descreva, a observação se consubstancie. O gato é a
personagem mais recorrente em poemas cuja paisagem se revela essencialmente
urbana, sendo possível vislumbrar na sua presença uma espécie de resquício
natural em contexto adverso à Natureza. Mas o gato é também companhia e,
enquanto tal, manifestação de uma certa solidão, de um certo isolamento, ou
recolhimento, que o sujeito faz transparecer por interposta figura.
Há igualmente
uma face lúdica nestes apontamentos que não pode ser descurada:
SONETO CONTRA AS PESPORRÊNCIAS
A cada poeta
o lugar-comum
que merece:
uma veia aberta
pelo sopro
uma aresta de luz
rente ao nervo
ou até Deus
e a sua infinita
misericórdia
O meu é esta mesa
onde todos os dias
bebo o mesmo café
de sempre
Entre as
diversas cenas quotidianas sobressaem, por vezes, erupções emotivas que apontam
para o cansaço, para a melancolia, para uma certa desilusão. Talvez exista
nesta via uma busca da simplicidade, do desapego, uma atitude poética que tenta
organizar em breves e depurados retratos a experiência directa dos dias na
cidade. A característica fundamental é a recusa da figura do poeta enquanto mestre,
ele coloca-se no lugar do aprendiz que observa e da observação tentar obter uma
certa forma de conhecimento. Num outro livro do autor, intitulado Teorias
(2011), já tínhamos percebido a sua desconfiança perante as grandes elaborações de um
discurso filosófico meramente racional, desligado da experiência, mas sobretudo a desconfiança de uma poesia eloquente e exageradamente verborreica. manuel a. domigos escreve
contra o excesso, escreve a favor de uma humilíssima consciência do lugar que
todos nós ocupamos no mundo, escreve a favor de uma aprendizagem continuada da vida, sem qualquer necessidade de impor lições ou de estabelecer uma qualquer axiomática do saber poético.
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