Pressenti durante a caminhada de ontem que talvez fosse
este o momento para vos falar um pouco acerca da felicidade. Como sabeis, tive
por instantes necessidade de recolher-me, de me isolar, de me afastar da
multidão que percorria o mesmo percurso por nós percorrido, interrompendo-o
aqui e acolá para uma fotografia, para uma selfie, para dar uso ao selfie stick
adquirido na loja dos chineses. Foi num desses instantes de recolhimento, ao
passar as mãos pela água fresca do riacho, sentado numa pedra a ouvir pássaros,
rãs e grilos, a observar a multidão à nossa volta, foi num desses instantes que
me lembrei de Epicuro. Confesso-vos que a certa altura não resisti à tentação
de censurar toda aquela gente, mas logo me desfiz em desculpas pensando no quão
saudável era que ali estivessem, fazendo tão-somente o que nós estávamos a
fazer. Ocorreu-me que mereciam toda a nossa estima por também terem
preferido passear na natureza a uma deambulação pelo shopping center em pleno
dia do trabalhador, por certo repleto de outro tipo de caminheiros exactamente
à mesma hora.
Tereis tempo para perceber a complexidade da vida, com suas
infindáveis necessidades. Por ora vos lembro que houve um tempo em que alguns
homens se reuniam num jardim a discutir assuntos como a felicidade, um tempo
sem telemóveis nem televisões, um tempo sem máquinas fotográficas, um tempo até
sem livros tal como hoje os conheceis, um tempo antes do tempo, assim parece.
Mas existiu, não é fruto da nossa imaginação. Foi nesse tempo que viveu um
homem chamado Epicuro, homem cujas ideias outros tentaram calar ao longo dos
tempos. Mas as ideias resistem, minhas filhas, para lá do que nos é possível
imaginar. Delas conservam-se ecos, máximas e manuscritos, quer perdurem encerrados no
Vaticano ou sejam semeados pelo vento como o pólen.
Em
carta a um dos seus discípulos, diz-nos Epicuro que não há razões para ter medo
da morte, que o temor dos deuses é injustificável, que a felicidade na vida
pode ser resumida aos prazeres que dela retiramos, bastando para tanto uma vida
tranquila, rodeados de amigos, garantindo a satisfação das necessidades
básicas: comer, beber, abrigo. Este elogio da vida simples, minhas filhas,
podeis bebê-lo em muitas outras fontes, ainda que em nenhuma delas todas as
angústias humanas surjam resolvidas com tamanha: «Nada há de
temível na vida, para quem está verdadeiramente consciente de que nada existe
também de terrível em não viver». Diz-se que Epicuro morreu como viveu, tendo
vivido como pensou, coisa rara entre quem pense e viva.
Curioso que o publiquem junto a Séneca, mestre de outra escola, preceptor de Nero, malfadado
filósofo estóico. Muitas vezes contraditório no pensamento, foi obrigado a
suicidar-se por aquele que educou. Entre a vida feliz que apregoou e a que levou são poucas as coincidências, mas nem tudo nele é desprezível.
Desconfiava da opinião das multidões, valorizava a prática sobre a teoria, mas
também para ele o corpo era uma armadilha e os prazeres apenas garante de
alegrias ténues. Onde já ouvimos isto? Contra o epicurismo, vociferava: «A virtude é coisa elevada,
sublime, real, invencível, inesgotável; o prazer é coisa baixa, servil, fraca,
frágil, que se estabelece e permanece nos lupanares e nas tabernas». O prazer
que nos dá hoje lê-lo não vem senão de constatarmos quanto a sua própria vida se
encarregou de lhe negar a teoria. Daí que retumbe de retórica o remate da
prelecção:
Dizem-me: «Falas de uma maneira, vives de outra.» Essa foi, seres
maldosos e hostis até aos mais virtuosos sem excepção, a objecção feita a
Platão, feita a Epicuro, feita a Zenão; porque todos esses homens diziam não
como viviam, mas como deveriam viver.
“Venenosa malevolência” a minha, sentado
ali naquela pedra a censurar quem como eu caminha pelos mesmos trilhos da
felicidade possível: esta, na terra, tão fortuita e frágil e passageira, tão
dos breves prazeres, como vinho e pão na mesa.
2 comentários:
Comovente, pá! (recomendar-te-ia aos deuses, se tal me fosse possível)
Não exageremos. O Inferno fica-me bem.
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