quinta-feira, 2 de maio de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #16



   Pressenti durante a caminhada de ontem que talvez fosse este o momento para vos falar um pouco acerca da felicidade. Como sabeis, tive por instantes necessidade de recolher-me, de me isolar, de me afastar da multidão que percorria o mesmo percurso por nós percorrido, interrompendo-o aqui e acolá para uma fotografia, para uma selfie, para dar uso ao selfie stick adquirido na loja dos chineses. Foi num desses instantes de recolhimento, ao passar as mãos pela água fresca do riacho, sentado numa pedra a ouvir pássaros, rãs e grilos, a observar a multidão à nossa volta, foi num desses instantes que me lembrei de Epicuro. Confesso-vos que a certa altura não resisti à tentação de censurar toda aquela gente, mas logo me desfiz em desculpas pensando no quão saudável era que ali estivessem, fazendo tão-somente o que nós estávamos a fazer. Ocorreu-me que mereciam toda a nossa estima por também  terem preferido passear na natureza a uma deambulação pelo shopping center em pleno dia do trabalhador, por certo repleto de outro tipo de caminheiros exactamente à mesma hora. 
   Tereis tempo para perceber a complexidade da vida, com suas infindáveis necessidades. Por ora vos lembro que houve um tempo em que alguns homens se reuniam num jardim a discutir assuntos como a felicidade, um tempo sem telemóveis nem televisões, um tempo sem máquinas fotográficas, um tempo até sem livros tal como hoje os conheceis, um tempo antes do tempo, assim parece. Mas existiu, não é fruto da nossa imaginação. Foi nesse tempo que viveu um homem chamado Epicuro, homem cujas ideias outros tentaram calar ao longo dos tempos. Mas as ideias resistem, minhas filhas, para lá do que nos é possível imaginar. Delas conservam-se ecos, máximas e manuscritos, quer perdurem encerrados no Vaticano ou sejam semeados pelo vento como o pólen. 
   Em carta a um dos seus discípulos, diz-nos Epicuro que não há razões para ter medo da morte, que o temor dos deuses é injustificável, que a felicidade na vida pode ser resumida aos prazeres que dela retiramos, bastando para tanto uma vida tranquila, rodeados de amigos, garantindo a satisfação das necessidades básicas: comer, beber, abrigo. Este elogio da vida simples, minhas filhas, podeis bebê-lo em muitas outras fontes, ainda que em nenhuma delas todas as angústias humanas surjam resolvidas com tamanha: «Nada há de temível na vida, para quem está verdadeiramente consciente de que nada existe também de terrível em não viver». Diz-se que Epicuro morreu como viveu, tendo vivido como pensou, coisa rara entre quem pense e viva. 
   Curioso que o publiquem junto a Séneca, mestre de outra escola, preceptor de Nero, malfadado filósofo estóico. Muitas vezes contraditório no pensamento, foi obrigado a suicidar-se por aquele que educou. Entre a vida feliz que apregoou e a que levou são poucas as coincidências, mas nem tudo nele é desprezível. Desconfiava da opinião das multidões, valorizava a prática sobre a teoria, mas também para ele o corpo era uma armadilha e os prazeres apenas garante de alegrias ténues. Onde já ouvimos isto? Contra o epicurismo, vociferava: «A virtude é coisa elevada, sublime, real, invencível, inesgotável; o prazer é coisa baixa, servil, fraca, frágil, que se estabelece e permanece nos lupanares e nas tabernas». O prazer que nos dá hoje lê-lo não vem senão de constatarmos quanto a sua própria vida se encarregou de lhe negar a teoria. Daí que retumbe de retórica o remate da prelecção: 

Dizem-me: «Falas de uma maneira, vives de outra.» Essa foi, seres maldosos e hostis até aos mais virtuosos sem excepção, a objecção feita a Platão, feita a Epicuro, feita a Zenão; porque todos esses homens diziam não como viviam, mas como deveriam viver.

   “Venenosa malevolência” a minha, sentado ali naquela pedra a censurar quem como eu caminha pelos mesmos trilhos da felicidade possível: esta, na terra, tão fortuita e frágil e passageira, tão dos breves prazeres, como vinho e pão na mesa.

2 comentários:

maria disse...

Comovente, pá! (recomendar-te-ia aos deuses, se tal me fosse possível)

hmbf disse...

Não exageremos. O Inferno fica-me bem.