domingo, 27 de outubro de 2019

JOSÉ BENTO (1932-2019)


    O que ele não viveu nos anos suprimidos
depois de ter abandonado
a terra hoje rescaldo na memória
(ruas, sombras, páginas, crepúsculos
a transbordar de becos ou ateando o mar,
aquele rosto ainda mais seu do que este
que desde o início se lhe impõe no espelho),

— é acaso a sua vida verdadeira,
a única a manar o impulso estranho
que no sonho se atinge
com tanta força que tem de dissipar-se.

   O que foram esses dias abolidos
sob motivos nulos
por actos não mais que nascituros
ninguém decifrará nunca,
e ele menos que todos:
ignora quem era
quando não se reconheceu ao contornar
a distância a que de si vagueava.

    Regressar, se possível fosse
avivar anos pútridos — tantos
que uns sobre os outros se esfacelam —,
e entre os seus estratos
retomar o que não pôde apreender-se
por não ter assumido a sua forma?

    Talvez então entre os corpos ressurgidos
ele brotasse, não como ressurgido
mas caminhando uma vez mais
por ruas familiares, a repor casas
onde alguém se lembraria do seu vulto,
sustentando nos ombros a matina
que o chamasse não importaria aonde:

    unos por fim aquele rosto tão ansiado
e este outro de que mal sabe ser o seu.


José Bento, in Canal - Revista de Literatura, n.º 3, Edição Palha de Abrantes, Julho/Agosto de 1998,  p. 10.

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