Sei que esta grande tempestade
por causa de mim vem sobre as paredes
da casa, afastados já os móveis.
As paredes, ao se afastarem os móveis,
erguem-se, despidas, coradas até à raiz dos rodapés,
como paredes sem móveis: demasiado brancas,
branco casca de ovo, branco gelo, branco mate,
consoante a cor com que as paredes se pintaram
antes de se lhes colarem os móveis.
Foram três dias e três noites nas entranhas
das paredes na esperança de expiar a culpa,
o pecado: branco sujo até se afastarem os móveis.
Dentro da cabeça das paredes, sobretudo
da cabeça do coração, até se afastarem os móveis,
cobria-se de cal essa certa esperança
de esconder defeitos. Ao se afastarem os móveis,
as paredes deixaram cair pregos, abriram rachas,
mostraram, pudicas, as manchas. Espreitava-se
e via-se-lhes a olho nu o espaço íntimo,
o sangue inocente posto sobre nós
no que parecia ser a boca dentada de um peixe.
Paredes, estais hoje mais velhas do que nós.
O branco, demasiado aberto, não vos assenta bem.
Tentamos vestir-vos de quadros e desenhos;
já nada vos serve: o homem das obras ordenou
a demolição. Porque Tu, Senhor, fizeste como te agradou:
três dias e três noites em oração contra Ti.
A grande tempestade por causa de mim
expôs como ferida
em carne viva o esqueleto
da casa. Ossos feitos de material de construção.
Inês Fonseca Santos (n. 1979), in A Habitação de Jonas
(Abysmo, 2013). Três livros de poesia publicados, dos quais As Coisas (2012) foi o primeiro.
Seguiram-se A Habitação de Jonas e Suite sem vista (2018), poemas sequência nos
quais se torna mais evidente a opção por uma dramatização do sujeito poético na
sua relação com o mundo. Em A Habitação de Jonas a voz do sujeito encarna a do
profeta que durante três dias e três noites se sentiu sepultado no estômago de
um grande peixe, enquanto no livro Suite sem vista encontramos uma rapariga num
quarto de hotel. O que sobressai em ambos os livros é a situação de clausura.
Rodeado de paredes, o sujeito encontra-se isolado do mundo. Não necessariamente
protegido, não necessariamente ameaçado. No fundo, a esta clausura corresponde
um movimento para a interioridade do sujeito, daí ressaltando sentimentos de
dúvida, medo, solidão, acentuados por um conflito entre memória e esquecimento. A relação amorosa aludida em ambos os
poemas surge retratada, deste modo, num panorama de ruína à qual se associa o
vazio interior da habitação enquanto expressão de um vazio existencial. A
habitação desnudada é lugar de solidão, as paredes ouvem já apenas silêncio e
os segredos que guardam são murmúrios de memórias passadas. Cativas no interior
de si mesmas, as personagens destes poemas como que fazem o luto de uma
relação. Com o mundo? Com o outro (desejado)? Certo é que entre o eu do sujeito e o
outro com o qual se relaciona ergue-se uma anomalia comunicacional. Jonas roga
ao Senhor para ser libertado de si mesmo, a rapariga escava as paredes da suite
e encontra medo, o outro está preso dentro das palavras dela, as palavras são
as paredes. Verbalmente contida, rigorosa na organização dos momentos
narrativos, Inês Fonseca Santos inscreve a sua poesia numa tradição reflexiva
que toma o domínio da linguagem enquanto tema primordial do poema. Os cenários
de que se serve são hipóteses de dramatização dessa (auto)reflexão do
poema que se questiona a si mesmo.
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