domingo, 24 de novembro de 2019

DOIS LIVROS DE JAIME ROCHA



   Poucos escritores há cuja generalidade da obra se concentre num local, conservando-lhe a memória e registando o ambiente humano que a habita. Mesmo quando sabota literariamente uma ligação fortemente afectiva à Nazaré natal, desviando-se para territórios tingidos de imagens surrealistas e climas fantásticos, Jaime Rocha (n. 1949) oferece aos seus leitores reminiscências esparsas das suas raízes. 
   Tomemos como exemplos dois contos inéditos da colectânea O Estendal e Outros Contos (Relógio D’Água, Junho de 2019), aos quais se juntaram mais sete já anteriormente publicados. Tanto em O Estendal como no conto intitulado O Carpinteiro Cego o onirismo sobrepõe-se a qualquer preocupação com a realidade, sendo da natureza dos factos relatados uma inegável dimensão fantasiosa. No entanto, se no primeiro conto a imagem da mulher a esfregar roupa num tanque, a torcer os lençóis e a batê-los na barrela recupera um gesto anacrónico, mas muito presente nas memórias de quem tenha vivido na província, no segundo é o ritual fúnebre da família de um defunto a prepará-lo para o velório que nos envia para um tempo e um lugar que parecem já só existir enquanto ecos de um passado distante. 
   Se os intrigantes acontecimentos associados a cada um destes contos lhes conferem a dimensão fantástica acima aludida, também não é menos verdade que os gestos das personagens, independentemente da sua estranheza e desorientação, remetem para acções muito concretas. Curioso se torna assim notar como tanto num conto como no outro o nascimento e a morte são desapropriados da sua lógica interna numa reconfiguração do absurdo existencial, isto é, tanto os recém-nascidos do conto O Estendal como o morto do conto O Carpinteiro Cego encontram-se num estado dúbio que não oferece ao leitor certezas acerca da vida ou da morte. 
   Reencontraremos precisamente esta incerteza no livro de poemas Mulher e um Cão que Dança (volta d’mar, Outubro de 2019), o qual, à semelhança do que sucede noutras obras do mesmo autor, tais como o romance Escola de Náufragos (Relógio D’Água, Março de 2016) ou o poema-sequência Mulher Inclinada com Cântaro (volta d’mar, 2012), é muito mais explícito na apropriação que faz da paisagem geográfica e no ambiente humano da vila da Nazaré. Nesta mais recente sequência a incerteza dramatiza-se a partir das figuras osmóticas de uma mulher e de um cão que esperam em terra que o mar lhes devolva o corpo do náufrago. À experiência da ausência junta-se a dor da espera num «anfiteatro de areia» (p. 9) onde destroços devolvidos pelo mar são o elemento essencial de um ritual doloroso num cenário de beleza. 
   A componente narrativa do poema construído por Jaime Rocha resulta numa dramatização «dos dias de espera» (p. 17), de «espera silenciosa» (p. 30), com imagens fortíssimas como a do cão a lamber o que resta do dono ou a da mulher que «percorre então a fronteira com o mar, / descalça, por cima dos búzios e das conchas / partidas, deixando um rasto de sangue que / atrai definitivamente as gaivotas» (p. 16). Este elemento imagético, que é uma das características mais fortes na obra de Jaime Rocha, quer a narrativa, dramatúrgica ou a poética, grava na paisagem dos seus textos, ainda que amiudadamente num contexto fantasioso, onírico ou, se preferirem, surrealista, as marcas essenciais de uma vivência/experiência do lugar que serve de matriz à acção. 
   As imagens por vezes apocalípticas de que se socorre são a expressão de um mar de destroços onde vida e morte se confundem, onde a beleza e a dor se unificam, onde o tempo e o espaço se misturam. No fundo, tal como o guionista estrangeiro do conto O Estendal, também o autor se encontra estranhamente no interior do seu próprio guião, perdido num cenário paradoxalmente absurdo e nítido, pois são suas as memórias onde se sustentam as imagens e é sua a melancolia dessas memórias, como a de um cão que dança enquanto espera o corpo naufragado do dono.

1 comentário:

Andrea Liette disse...

Nem todo cão tem dono. Há "Mulheres que correm com lobos"! Abraço