sábado, 23 de novembro de 2019

FALA DO ACTOR

Trazer algo à tona não é fácil.
Todos os dias tenho de remover o galgo
de porcelana, preto e dourado,
que vem dormir à minha sombra.
O drama é que todos os dias é maior,
o cão de pechisbeque. Malditos chineses.
Não acredito que seja algo pessoal,
é como um tique que os domina. Mas
é o meu trabalho pela manhã, remover o galgo.
Pesa, o sacrista. Cada dia é pior, como expliquei.
Só depois me aventuro a trazer algo à tona.
Grave, é que nem sei explicar o que momentaneamente 
aflora. Pratico a acção de construir acções
- não chega? Dói como cem metros
de crawl na gelatina. Forçar o invisível
a mostrar-se não é simples
e, o maldito, ri-se dos objectivos estabelecidos à priori.
Não me serve de nada o treinamento de actor,
ser esfolado vivo não é uma possibilidade expressiva
mas o próprio desejo da terra quando o inverno
chegou ao ponto mais baixo do seu desapontamento
e daí surge, aflito, um broto, um pio de cotovia,
a minha mutação ao espelho, emaciada
pela palavra com dois furos nos olhos
que impelem num vago sentido de direcção
como aos girassóis quando o vento lhes chega o gume.
Só assim me liberto da minha pele, inútil
pele de serpente, e (reconheço-o por um ardor
muscular e o vómito de ter acabado de cuspir
todos os vermes da minha morte), emerge à tona
algo que desconhecia e reclama lugar.
Pulsa-me no palato, nos pulsos, no coração
que me verte na tua veia
e me coloniza.

António Cabrita, in A Gazeta de Madagáscar e Mais Doze Despedidas, Nova Mymosa, Novembro de 2019, pp. 7-8.

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