Poucos escritores há cuja generalidade da obra se concentre
num local, conservando-lhe a memória e registando o ambiente humano que a habita.
Mesmo quando sabota literariamente uma ligação fortemente afectiva à Nazaré
natal, desviando-se para territórios tingidos de imagens surrealistas e climas
fantásticos, Jaime Rocha (n. 1949) oferece aos seus leitores reminiscências esparsas
das suas raízes.
Tomemos como exemplos dois contos inéditos da colectânea O
Estendal e Outros Contos (Relógio D’Água, Junho de 2019), aos quais se juntaram
mais sete já anteriormente publicados. Tanto em O Estendal como no conto intitulado
O Carpinteiro Cego o onirismo sobrepõe-se a qualquer preocupação com a realidade,
sendo da natureza dos factos relatados uma inegável dimensão fantasiosa. No
entanto, se no primeiro conto a imagem da mulher a esfregar roupa num tanque, a
torcer os lençóis e a batê-los na barrela recupera um gesto anacrónico, mas
muito presente nas memórias de quem tenha vivido na província, no segundo é o
ritual fúnebre da família de um defunto a prepará-lo para o velório que nos
envia para um tempo e um lugar que parecem já só existir enquanto ecos de um
passado distante.
Se os intrigantes acontecimentos associados a cada um destes contos lhes conferem a dimensão fantástica acima aludida, também não é
menos verdade que os gestos das personagens, independentemente da sua
estranheza e desorientação, remetem para acções muito concretas. Curioso se torna assim notar como tanto num conto como no outro o nascimento e a morte são desapropriados
da sua lógica interna numa reconfiguração do absurdo existencial, isto é, tanto
os recém-nascidos do conto O Estendal como o morto do conto O Carpinteiro Cego
encontram-se num estado dúbio que não oferece ao leitor certezas acerca da vida
ou da morte.
Reencontraremos precisamente esta incerteza no livro de poemas
Mulher e um Cão que Dança (volta d’mar, Outubro de 2019), o qual, à semelhança
do que sucede noutras obras do mesmo autor, tais como o romance Escola de
Náufragos (Relógio D’Água, Março de 2016) ou o poema-sequência Mulher Inclinada
com Cântaro (volta d’mar, 2012), é muito mais explícito na apropriação que faz
da paisagem geográfica e no ambiente humano da vila da Nazaré. Nesta mais
recente sequência a incerteza dramatiza-se a partir das figuras osmóticas de
uma mulher e de um cão que esperam em terra que o mar lhes devolva o corpo do
náufrago. À experiência da ausência junta-se a dor da espera num «anfiteatro de
areia» (p. 9) onde destroços devolvidos pelo mar são o elemento essencial de um
ritual doloroso num cenário de beleza.
A componente narrativa do poema construído
por Jaime Rocha resulta numa dramatização «dos dias de espera» (p. 17), de «espera silenciosa»
(p. 30), com imagens fortíssimas como a do cão a lamber o que resta do dono ou
a da mulher que «percorre então a fronteira com o mar, / descalça, por cima dos
búzios e das conchas / partidas, deixando um rasto de sangue que / atrai
definitivamente as gaivotas» (p. 16). Este elemento imagético, que é uma das
características mais fortes na obra de Jaime Rocha, quer a narrativa,
dramatúrgica ou a poética, grava na paisagem dos seus textos, ainda que amiudadamente
num contexto fantasioso, onírico ou, se preferirem, surrealista, as marcas
essenciais de uma vivência/experiência do lugar que serve de matriz à acção.
As
imagens por vezes apocalípticas de que se socorre são a expressão de um mar de
destroços onde vida e morte se confundem, onde a beleza e a dor se unificam,
onde o tempo e o espaço se misturam. No fundo, tal como o guionista estrangeiro
do conto O Estendal, também o autor se encontra estranhamente no interior do
seu próprio guião, perdido num cenário paradoxalmente absurdo e nítido, pois
são suas as memórias onde se sustentam as imagens e é sua a melancolia dessas
memórias, como a de um cão que dança enquanto espera o corpo naufragado do dono.
1 comentário:
Nem todo cão tem dono. Há "Mulheres que correm com lobos"! Abraço
Enviar um comentário