sexta-feira, 22 de novembro de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #25



   Mesmo que não quisésseis saber, por esta altura é inevitável que pelo menos já vos seja familiar o nome da deputada Joacine Katar Moreira. Não é por simpatia ideológica que a ela me refiro, mas como ficar indiferente à forma como introduziu o amor no discurso político? «Não se pode falar de salário mínimo nacional sem amor», disse em pleno parlamento, para espanto de uns, indiferença de outros e gozo de tantos. Quase ao mesmo tempo que o dizia, assistíamos nós, minhas filhas, a uma peça acerca da incompatibilidade entre política e amor. Tereis reparado na coincidência?
  Em “Reinar Depois de Morrer”, de Luis Vélez de Guevara (1579-1644), impõe-se aquilo a que chamam razão de estado. E o que poderá ser isso senão disparar sobre os olhos de quem se manifesta, calar o estupro e a execução de uma mimo, lançar gás lacrimogénio sobre os mortos? É o tempo em que vivemos, este tempo insuportável de desamor e crueldade, este tempo de razão de estado desprovido de amor. 
   Sobre o Príncipe Pedro e Inês de Castro podemos, em resumo, supor que o rei fez como Pilatos. Camões o sublinhou no terceiro canto da epopeia nacional, atribuindo ao povo o gesto inclemente da condenação de um amor que não convinha ao destino pátrio. Retomando imagens e conceitos, pelo menos Bocage foi capaz de apontar os “pomposos cortesãos” e o “monstro da política”. Nem sempre os poetas resistem às circunstâncias, preferindo a maioria evitar as ruas para com elas não assumir o compromisso de um amor transbordante, mais largo e comprido do que a cama onde o sonho os distrai da realidade.
   Vede como Torga comparou nossos amantes a personagens literárias, transformando Pedro num Romeu de Portugal e Inês numa Julieta castelhana. E se Natália não fugiu à visceralidade dos factos, sublinhando a ira do príncipe e referindo-se ao “ritual macabro da coroação”, verdade é também que tanto no tom como na forma manteve o caso em estâncias mitológicas. Do poder político, queridas filhas, podeis esperar pouco mais do que cobrança de impostos, sendo por isso mesmo tanto mais urgente que vos empenheis em exigir-lhe serviços. 
   Se Herberto preferiu olhar para o caso pela perspectiva do algoz, não foi por haver inocência na sua intenção. Muitos anos passados sobre as naves de Alcobaça, outros algozes defenderam-se dos crimes perpetrados sublinhando sua condição de funcionários. Ficai sabendo que, em matéria de razão de Estado, para o mal todos os funcionários são poucos, enquanto para o bem quase sempre escasseiam recursos. Imaginai, pois, esse ideal de feminilidade como o imaginou Ruy Belo, ou considerai a hipótese remota de uma paixão assolapada nestes tempos em que impossível parece ser o amor tout court. Procurai seguir-lhe o rastro, tal como o sugere nosso amigo Nuno Dempster, nas ruas de uma actualidade onde tudo parece desprovido de paixão. Talvez assim vos seja possível chegar onde o amor foi inventado. 
   Nisto vos ofereço, então, “A Invenção do Amor e Outros Poemas”, de Daniel Filipe (1925-1964), poeta nascido num arquipélago para onde foram enviados tantos amantes depois de haverem sido perseguidos e torturados. Esse Estado que persegue quem ama, como um algoz ao serviço do poder, ressurgido e reinventado no poema com o fundo demencial desta tirania desde há muito instalada na cabeça dos homens, é a esse Estado que nos devemos opor, pois nenhuma incompatibilidade pode haver entre amar e querer o bem do outro. Esvaziada de amor, que será a política senão mero jogo de poder? Sangrada de paixão, que será a política senão intriga egoísta contra a dança e a alegria de estarmos vivos? 
   Que o “grito de esperança inconsequente” de que fala o poema possa ter consequências nos vossos corações, para que o mito seja real pelo menos no modo que vieres a adoptar quando vossos olhos se cruzarem com quem vos olha. Tem razão a deputada, sim, ainda que a razão de Estado pretenda demonstrar o contrário, ao mesmo tempo que cospe na mão de quem pede esmola e se apropria da caixa onde o pedinte amealha donativos. Não, minhas filhas, não permitis que vos façam confundir amor com misericórdia. O amor é solidário, sem solidariedade a política apodrece, o amor é o remédio que protege a política da absoluta podridão.

2 comentários:

Andrea Liette disse...

Toda crítica que pretende despertar a consciência para compaixão coletiva também é amorosa. O amor é nobre e responsável. Em tempos de crise se expressa com vigor. Ou então, seríamos a voz da prosmicuidade . Abraços para você e suas filhas.

Maria Eu disse...

Tenho essa edição, precisamente! Um livro que foi determinante, na minha adolescência, para o meu amor pela poesia.
Que as suas filhas o leiam com amor!