sexta-feira, 10 de abril de 2020

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #28


Minhas filhas, calhou-nos nascer num país em que a maioria das pessoas acredita que o universo foi criado em seis dias. Ao sétimo, o Criador descansou. Depois modelou o homem à sua imagem e semelhança, da costela do homem fez a mulher, da mulher fez o pecado e do pecado surgiu o arrependimento. E do arrependimento fez as maldições e os castigos. Minhas filhas, este Deus em que a maioria das pessoas no nosso país acredita tem, como qualquer Deus, as suas particularidades. Ele manda o homem obedecer. Em havendo quem prevarique, ele ordena aos homens obedientes que apliquem sua lei com vergastadas, apedrejamentos, sacrifícios, guerras, condenações à morte, destruição, castrações, mutilações, multas, enforcamentos… Deus exige, Deus revolta-se, Deus é grande e faz-se notar pelo medo: «Não tenhas pena do culpado. Deve-se exigir vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé».
   Minhas filhas, muitas pessoas no país onde por fortuna calhou nascermos crêem que há coisa de dois mil anos esse Deus teve um filho. Foi gerado no ventre de uma mulher virgem. Para que fenómeno tão extraordinário não vos confunda, socorro-me do exemplo de um tal Denis Diderot (1713-1784): «Uma mulher jovem, que se deitava de ordinário com o seu marido, recebeu um dia a visita de um jovem acompanhado por um pombo. Após essa visita, a mulher ficou cheia: e as pessoas perguntavam quem fora, do marido, do jovem ou da ave, que lhe fizera o filho. Um sacerdote que ali estava disse: «Está provado que foi a ave».» E o que está provado, provado está. Para mulheres adúlteras, o tal Deus prevê apedrejamento até à morte. Mas para mulheres engravidadas por pombos ele não previu nada.
   Podeis interrogar-vos sobre o porquê de um Deus perfeito ter pretendido um filho, ao que deverei responder com toda a honestidade: não faço a mínima ideia. Sei que depois do filho ter rezado ao pai, isto é, depois de Deus ter rezado a si mesmo, tornou-se altamente popular entre aqueles que, lavando as mãos da crucificação, agora o representam na Terra sob a figura de um Papa eleito por homens, paridos por mulheres, concebidos em pecado. Confusas? Não desespereis, o enredo vai a meio. 
   De Jesus, o nazareno, diz-se que veio à Terra para nos fazer olhar para o Céu. Com o sacrifício de seu próprio filho, Deus quis dar aos homens um exemplo de fé. Em quê? perguntais-me. Ora, fé num Deus todo-poderoso, omnipresente, omnisciente, a quem nem sequer falta um defeito para que seja perfeito. O defeito é, pois claro, o produto da sua criação. Deus tem fé em si mesmo e espero que lhe sigamos o exemplo. Citemos novamente Diderot: «Todos os povos têm desses factos, aos quais, de maravilhosos que são só falta serem verdadeiros; com os quais se demonstra tudo, mas sem que sejam eles mesmos provados; que não ousa negar quem não seja ímpio, nem pode crer quem não seja imbecil».
   Não satisfeito com o sacrifício do próprio filho, Deus ressuscitou-o. Não satisfeito em ressuscitá-lo, Deus concedeu-lhe o poder de se fazer mostrar em aparições. A ele e à mãe dele. Só Deus não se mostra. Este é, para mim, o maior dos seus milagres. Mais do que curar cegos e coxos, mais do que reanimar mortos, o grande milagre do Senhor é a sua eterna invisibilidade. Ele está lá, mas a gente não o vê. Está na terra manchada de sangue por guerras e crimes hediondos, está nos terramotos e nos marmotos, está na poluição dos céus e dos lençóis freáticos e nos plásticos ingeridos por sagradas criaturas, está nos germes, nas bactérias, nos vermes e nos vírus, está nas pandemias, a gente é que não o vê. Pois o seu milagre é não se mostrar. Deus está em tudo e como é lógico de tudo que está em tudo não estar em nada, Deus não está. Aguardemos por uma vacina.
   Podemos assim admitir, como o fez Diderot, que «Quando Deus, de quem recebemos a razão, exige o seu sacrifício, torna-se um manobrador habilidoso que escamoteia aquilo que deu»; ou que «Se há cem mil condenados por um que se salva, o diabo está sempre em vantagem, sem ter abandonado o seu filho à morte». Mas isto são verdades da lógica, a qual não contempla a Deus. A lógica de Deus é diferente da lógica dos homens e ainda está para aparecer um Aristóteles que a decifre e disponha numa espécie de “Sagrado Organon”. 
   De sagrado resta-nos a “Bíblia”, esse livro onde podeis melhor compreender um legislador tão perfeito, tão perfeito, que é próprio da sua perfeição abolir-se a si mesmo mandando amar por temor ao ódio. Não vos maçarei com as parábolas do Apocalipse, toda uma lógica divina cujos enigmas estão por desvendar. Haja homem para tanto. Mas gostaria de vos sugerir os “Pensamentos Filosóficos” (Edições 70, tradução de Miguel Serras Pereira) de Diderot como pórtico para uma reflexão que terá de ser vossa. Diderot fê-la anonimamente em 1746, temendo as fogueiras dos zeladores do tal Deus sem perdão para quem questione e duvide.  Começou por ser deísta, crítico e racional como fiel discípulo de Descartes. Acabou ateu, sepultado no Panteão de Paris ao lado de outros tementes a Deus.

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