Com o país paralisado e a bandeira da cultura à meia-haste,
ninguém leva a mal que as pequenas, micro e médias editoras de livros, mormente
de poesia, roguem aos céus por milagres pelo menos tão promissores como foi o
da ressurreição. Em nome do pai, que os leitores se multiplicassem; em nome do
filho, que não fechassem portas as poucas livrarias onde é possível meter
livros sem submetê-los à agiotagem de distribuidores gananciosos; em nome do
espírito santo, que dos livros que fossem sendo vendidos se recebesse algum
como garantia de que outros pudessem ser publicados. No paraíso cada pessoa
poderia viver do seu trabalho sem ter de se submeter à servidão pragmática de
extras. Longe de havermos lá chegado, e parecendo-nos cada vez mais distante por
nas lamas do inferno continuarmos a patinar, ainda por cima rodeados de
intervenientes que se divertem com a inumação, resta-nos purgar as mãos e
garantir dois metros de distanciamento social na esperança de que em não podendo
viver a respirar nos livremos de morrer com falta de ar. Por lavar as mãos
entendamos, neste contexto algo parabólico, cumprir o nosso pequeno papel de
leitores a quem os livros vão chegando por obra e graça do divino espírito santo.
Eis que nos chega o “Boletim Meteorológico” (volta d’mar, Março de 2020)
de Sandra Costa, autora que “Sob a luz do mar” (Campo das Letras, 2002)
descobrimos num tempo já distante e à qual regressámos, mais recentemente, por
culpa de um “Untitled” (volta d’mar, Dezembro de 2017) de boa memória.
Apoiando-se numa terminologia meteorológica, a autora adopta agora uma coloquialidade
que não é das suas marcas mais reconhecíveis, mantendo-se fiel, no entanto,
à tematização da lírica amorosa que já lhe conhecemos de outras paragens. Neste
sentido, o último poema, intitulado “Amanhã é o primeiro dia de Inverno”, é
talvez o mais revelador da comparência de um destinatário cuja ausência ou
distância contribui para a conjugação da romantização do amor com a
contemplação do mar.
Desde a primeira hora marca fortíssima desta poesia, o mar
— «elemento que é tão meu» (p. 15) — é o recurso paisagístico que atravessa quatro
estações de poemas onde se mede a temperatura às emoções reflectindo estados de
isolamento, distanciamento, ausência, solidão: «Em matéria de amor, / o que
conta é o que consinto que permaneça / nos olhos, mesmo quando destruo todos /
os versos que te escrevo» (p. 10). O objecto amoroso surge, desta forma, enquadrado
num ambiente contemplativo onde sobressaem um corpo frio — «A previsão
descritiva confirma que o frio / que sinto é real e não o resultado de qualquer
/ avaria técnica do meu corpo, tão desprovido / da seiva que só existe nos
amores correspondidos» (p. 11) —, umas mãos geladas, apesar de ser Agosto, uma intimidade em dessintonia com a impetuosidade geralmente conferida à lírica
amorosa: «Em desacerto com a chuva, que ora é íntima e / me desnuda ora é
distância e me reveste de sede, / entregue ao frio que só o estado sólido da
realidade / não poética consegue provocar, dilacerado por / relâmpagos que
iluminam e apagam confidências / em milésimos de segundos como se essa fosse a
/ duração da eternidade, assim existe e se demora / em mim o único lugar
possível onde ainda te / procuro, como um beijo» (p. 24).
“Boletim
Meteorológico” é um pequeno conjunto de poemas de uma autora no domínio pleno
da sua arte, consciente do tratamento a dar a temas que, sendo clássicos e lhe
sendo caros, podem assumir novas configurações, conquanto quem os recupere
saiba respeitá-los fazendo coincidir os mesmos com a cadência de uma respiração
singular: «Céu geralmente nublado, com períodos / de chuva e, na costa
ocidental, ondas de noroeste / com dois a três metros. A previsão do estado do
/ tempo a coincidir com o estado de tumulto, encolho / os ombros se lhe chamas
delírio, em que se está a / transformar o ritmo destes versos, sempre / a coincidir
com a cadência da minha respiração» (p. 15).
1 comentário:
Não te preocupes. Vai ficar tudo bem...
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