quinta-feira, 9 de abril de 2020

BOLETIM METEOROLÓGICO


Com o país paralisado e a bandeira da cultura à meia-haste, ninguém leva a mal que as pequenas, micro e médias editoras de livros, mormente de poesia, roguem aos céus por milagres pelo menos tão promissores como foi o da ressurreição. Em nome do pai, que os leitores se multiplicassem; em nome do filho, que não fechassem portas as poucas livrarias onde é possível meter livros sem submetê-los à agiotagem de distribuidores gananciosos; em nome do espírito santo, que dos livros que fossem sendo vendidos se recebesse algum como garantia de que outros pudessem ser publicados. No paraíso cada pessoa poderia viver do seu trabalho sem ter de se submeter à servidão pragmática de extras. Longe de havermos lá chegado, e parecendo-nos cada vez mais distante por nas lamas do inferno continuarmos a patinar, ainda por cima rodeados de intervenientes que se divertem com a inumação, resta-nos purgar as mãos e garantir dois metros de distanciamento social na esperança de que em não podendo viver a respirar nos livremos de morrer com falta de ar. Por lavar as mãos entendamos, neste contexto algo parabólico, cumprir o nosso pequeno papel de leitores a quem os livros vão chegando por obra e graça do divino espírito santo.
   Eis que nos chega o “Boletim Meteorológico” (volta d’mar, Março de 2020) de Sandra Costa, autora que “Sob a luz do mar” (Campo das Letras, 2002) descobrimos num tempo já distante e à qual regressámos, mais recentemente, por culpa de um “Untitled” (volta d’mar, Dezembro de 2017) de boa memória. Apoiando-se numa terminologia meteorológica, a autora adopta agora uma coloquialidade que não é das suas marcas mais reconhecíveis, mantendo-se fiel, no entanto, à tematização da lírica amorosa que já lhe conhecemos de outras paragens. Neste sentido, o último poema, intitulado “Amanhã é o primeiro dia de Inverno”, é talvez o mais revelador da comparência de um destinatário cuja ausência ou distância contribui para a conjugação da romantização do amor com a contemplação do mar. 
   Desde a primeira hora marca fortíssima desta poesia, o mar — «elemento que é tão meu» (p. 15) — é o recurso paisagístico que atravessa quatro estações de poemas onde se mede a temperatura às emoções reflectindo estados de isolamento, distanciamento, ausência, solidão: «Em matéria de amor, / o que conta é o que consinto que permaneça / nos olhos, mesmo quando destruo todos / os versos que te escrevo» (p. 10). O objecto amoroso surge, desta forma, enquadrado num ambiente contemplativo onde sobressaem um corpo frio — «A previsão descritiva confirma que o frio / que sinto é real e não o resultado de qualquer / avaria técnica do meu corpo, tão desprovido / da seiva que só existe nos amores correspondidos» (p. 11) —, umas mãos geladas, apesar de ser Agosto, uma intimidade em dessintonia com a impetuosidade geralmente conferida à lírica amorosa: «Em desacerto com a chuva, que ora é íntima e / me desnuda ora é distância e me reveste de sede, / entregue ao frio que só o estado sólido da realidade / não poética consegue provocar, dilacerado por / relâmpagos que iluminam e apagam confidências / em milésimos de segundos como se essa fosse a / duração da eternidade, assim existe e se demora / em mim o único lugar possível onde ainda te / procuro, como um beijo» (p. 24).
   “Boletim Meteorológico” é um pequeno conjunto de poemas de uma autora no domínio pleno da sua arte, consciente do tratamento a dar a temas que, sendo clássicos e lhe sendo caros, podem assumir novas configurações, conquanto quem os recupere saiba respeitá-los fazendo coincidir os mesmos com a cadência de uma respiração singular: «Céu geralmente nublado, com períodos / de chuva e, na costa ocidental, ondas de noroeste / com dois a três metros. A previsão do estado do / tempo a coincidir com o estado de tumulto, encolho / os ombros se lhe chamas delírio, em que se está a / transformar o ritmo destes versos, sempre / a coincidir com a cadência da minha respiração» (p. 15).

1 comentário:

rff disse...

Não te preocupes. Vai ficar tudo bem...