Não muito tempo depois de um cidadão afro-americano
(norte-americano por defeito) ser torturado e executado, a céu aberto, por um
polícia extremamente zeloso da sua farda, um protótipo da Starship explodiu no
Texas durante o período de testes. Como somos fracos a contas, desconhecemos
quantos milhões arderam em combustível e se transformaram em cinzas nesta
experiência com o espaço intergaláctico em vista, espaço esse onde certamente
se viverá divinamente. Cá pela Terra, o tal afro-americano foi estrangulado, ao
que se sabe, por causa de uma suposta nota falsa de vinte dólares. A mulher do
polícia pediu divórcio. são contas mais fáceis de fazer.
É preciso referir que Elon Munsk anda deveras
excitado com a possibilidade de tornar acessíveis as viagens ao espaço, sendo
acompanhado em tamanha excitação por uma caterva de fãs que descobriram nas
novas tecnologias o futuro da humanidade. Não fossem as novas tecnologias
jamais teríamos acesso aos smartphones, fabricados com metais raros importados
da China, e jamais saberíamos quem foi George Floyd, não teríamos a mesma
capacidade de organização de vigílias e de manifestações pacíficas,
silenciosas, pelo afro-americano e, já agora, pelos 820 milhões de famintos que
definham pelo mundo, pelos índios na Amazónia e pelo coala australiano.
Um dia deixaremos de falar da distribuição
da riqueza pelo planeta para nos concentrarmos definitivamente na distribuição
da miséria, as lojas de armas não terão filas à porta em tempos de pandemia e
os milhões que surgem do nada para descanso dos mercados poderão ser aplicados
em cabanas com vista para marés de poeira em Marte. Sou um optimista, a
mulher do polícia pediu o divórcio, o Twitter vigia as declarações do
presidente da maior potência militar do mundo, estamos a salvo, Kim Jong-un
continua vivo, Bolsonaro bebe leite e o suicídio prospera no Japão, um judeu e
um índio travam-se de razões no ringue das tragédias universais: o que foi
pior, o holocausto nazi ou o extermínio dos ameríndios?
Quem ande pelas redes sociais, essas mesmas
a quem Umberto chamou o eco de uma legião de imbecis, confronta-se amiúde
com problemáticas similares, não sendo de todo raro ver gente a medir forças
entre gulags e campos de concentração nazis, Israel e Palestina, brancos e
pretos, como quem discute um clássico da liga profissional de futebol. As vidas
das pessoas não importam, na equação custo/benefício valem pouco, pesam quase
nada. Se a certa altura da nossa suposta evolução enquanto seres humanos julgámos
que sim, perdemos qualquer resquício de fé nessa possibilidade ao olharmos de
relance o mundo actual. Weisman, o judeu da peça de György Tábori, pensou
livrar-se da filha deficiente como quem se livra de gatinhos recém-nascidos.
Carrega a filha-fardo como um peso na consciência, reconhece-o. O Cara Vermelha
com quem se debate não sabe quem ou o que é, está confuso, tem um problema de
identidade, talvez um pouco à semelhança do György feito George ou de todo e
qualquer afro-americano (norte-americano por defeito). Obama já passou, Trump
aí está para recuperar o orgulho supremacista branco.
“Weisman e Cara Vermelha” (Companhia das
Ilhas, Maio de 2020), a peça de George Tabori traduzida por Carlos Borges para
o Teatro da Rainha, não escapa ao tema complexo da identidade étnica e cultural
ao colocar em cena um judeu, o que resta de um índio e uma jovem mongolóide. Ainda
se pode dizer mongolóide? Deveria dizer downiana? A questão da identidade e o
desfile de desgraças que cada um dos pugilistas tem para arremessar (parecem
duas velhas a exibir doenças) não esgotam o alcance desta comédia negra, muito
ao nível do estado do mundo tal como o vamos percepcionando a cada dia que
passa. O que impele tanto o índio como o judeu para um Nada identitário é o que
vai ficar a martelar na nossa cabeça tal como martela na consciência de cada uma
daquelas criaturas.
As Rocky Mountains são cenário perfeito para um western, ainda que no duelo final a tensão exercida pelo poder de antecipação seja subvertida por um metralhar de desgraças pessoais que trazem já por terra os dois pistoleiros. Ao silêncio de esgares traiçoeiros projectados numa sala de cinema o teatro prefere a confissão de dois derrotados, havendo talvez entre ambos uma heroína improvável. Rute, a menina deficiente, com gestos alienados de lógica, criatura que aparenta ser de outro mundo, talvez do tal espaço intergaláctico onde Elon Munsk vai tentando meter os pés com foguetões que não chegam a levantar voo. É ela que ao espalhar as cinzas da mãe por cima do pai diz: «Agora semeio a mamã em cima de ti e das rochas crescerá beladona.» A sua deficiência é estar do lado dos vencidos. Não há tecnologia capaz de transmitir tamanha sabedoria.
2 comentários:
sempre ouvi dizer que a Suécia era a "campeã" dos suicídios. de onde retirou a ideia de que "o suicídio prospera no Japão"?
https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_suicide_rate
de acordo com a wikipedia (é uma fonte tão má ou tão boa como qualquer outra) Rússia, homens, e Lesoto, mulheres, é quem vai à frente.
https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150705_japao_suicidio_rb
https://www.japantimes.co.jp/news/2020/05/17/national/social-issues/japan-suicides-coronavirus/#.XtOtBFVKjIU
https://www.theguardian.com/world/2020/may/14/japan-suicides-fall-sharply-as-covid-19-lockdown-causes-shift-in-stress-factors
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