Apesar de nos ter permitido saídas rápidas e higiénicas, como
aprendi que pode ser um passeio ao ar livre, o período de confinamento
remeteu-nos às paredes de casa, animais enjaulados num zoológico para protecção
da espécie, cada um de nós feito exemplar raro de um mundo elevado a área
protegida. A atmosfera respondeu positivamente ao nosso súbito desaparecimento,
interrupção momentânea para cantorias à janela e partilhas on-line. Como já se
vai vendo por aí, há, porém, todo um novo lixo a dar à costa que faz do “passeio
higiénico” uma sátira bisonha dos comportamentos humanos. Somos altamente
poluentes e virais, contaminamos tudo à nossa volta com um desleixo e uma
incúria que transforma o mundo numa pocilga e os seres humanos em suínos de
duas pernas que, por acaso, até facilmente aprendem a andar de bicicleta, ainda
que prefiram veículos movidos a gasóleo. As remessas de máscaras cirúrgicas que
vêm dando à costa são um cirúrgico exemplo da cloaca universal onde adoramos
chafurdar. O coronavírus versão 2019 é só uma variante da peste suína. São
assim os homens. Haverá alguma coisa a fazer? Quem está disposto a mudar?
Entretanto, espreitámos o bairro pela janela, fomos à varanda, contámos o
número de vezes que numa semana os do direito aspiraram a casa e deliciámo-nos
com a diversidade de underwear nos estendais circunvizinhos.
Publicado em período pré-covid, “periferias da luz” (Eufeme, Outubro de 2019), de António Ferra (n. 1947), podia ser uma inusitada introdução à vida no bairro, até por nos fazer aperceber de quanto se perdeu de vida com o silêncio das ruas e as pessoas atiradas para dentro dos respectivos fogos como achas para uma fogueira de solidão, querelas domésticas, desespero, ansiedade e depressão. Estarei só a ver o lado mau da coisa, admito. Mas em que pensar, senão no lado mau, agora que em passeio pela orla marítima dou com o lixo cuspido no areal? Muito mais divertida do que estas minhas queixas é a dúzia de poemas longos no livro de António Ferra, poemas narrativos, como é usual dizer-se daqueles que nos contam estórias sem estarem preocupados com a maquilhagem das personagens. Poemas quotidianos, talvez, por captarem o dia-a-dia sem indagações metafísicas nem artifícios nostálgicos, sem saudade do que era e não volta a ser nem inquietações com o que ainda não é. A filosofia destes poemas é um presente em trânsito.
O longo poema inicial vale por si só uma visita ao bairro periférico da luz. Nele encontramos um vendedor door-to-door (em inglês fica mais moderno) de software, de regresso a casa, às voltas e voltas na esperança de arranjar estacionamento para o carro. Um redemoinho de pensamentos vêm-lhe à tona enquanto circula em marcha lenta e as horas passam. Ele que tem a vida engatada em terceira, não gosta de perder tempo com conjecturas e apenas sonha «com uma garagem de penas / para estacionar a alma» (p. 9), vê as horas passarem enquanto anda Às voltas à procura de lugar para estacionar o carro. “Estacionamento” é um daqueles poemas cuja simplicidade da linguagem não descura em nada a complexidade do que se subentende numa estrutura repetitiva, como em certa música dita minimalista ou em algumas peças de Beckett que exploram o inútil da existência fazendo-nos pensar que o mais exacto dos epitáfios seria: a vida é uma perda de tempo. O sujeito poético do poema contratou consigo mesmo não pensar no futuro, ainda que esteja farto de andar à volta de si mesmo. Tal como o carro que anda às voltas do bairro, ele anda à volta de si mesmo, olha para os muros do autoconfinamento (chamemos-lhes assim) e diz: «A noite ainda é longa, vou acelerar, / agora já estou mesmo sem paciência, / talvez pelo mal-estar causado pela velocidade destes pensamentos / sem poderem estacionar num canto recôndito da alma. // Mais à frente, na zona de prédios altos, de uma dúzia de / andares por bloco, reparo que não há varandas. / É um incómodo tão grande a ausência de / flores, mesmo aquelas em que não reparamos, porque são / politicamente irrelevantes. / Pensando bem, é impossível encontrar lugar para / estacionar os automóveis de tantas habitações / a que chamavam fogos mesmo que não ardam. / Mas aquelas fachadas lisas, só com janelas planas, são / a angústia de não ter espaço para existir e apenas sonhar / com rosas de jardim. / Não há zonas de varandas com sardinheiras pendentes / para aliviar o peso dos dias pagos a crédito» (p 19).
Se em cada um dos poemas que compõem este livro podemos ver um monólogo, não seria má ideia que alguém neles pegasse um dia para em palco dar vida às personagens que neles foram fixadas. Este vendedor de software e a alternadeira do poema “As Pernas da Vanessa” são dois quadros imprescindíveis de uma fauna que passa despercebida pela vida mas não escapa ao olhar atento de certos poetas. António Ferra é um deles. Falhados, meliantes, rufias, gente comum, são o magma desta poesia das noites suburbanas, microcosmo de uma humanidade periférica como a luz que ilumina o poema.
Publicado em período pré-covid, “periferias da luz” (Eufeme, Outubro de 2019), de António Ferra (n. 1947), podia ser uma inusitada introdução à vida no bairro, até por nos fazer aperceber de quanto se perdeu de vida com o silêncio das ruas e as pessoas atiradas para dentro dos respectivos fogos como achas para uma fogueira de solidão, querelas domésticas, desespero, ansiedade e depressão. Estarei só a ver o lado mau da coisa, admito. Mas em que pensar, senão no lado mau, agora que em passeio pela orla marítima dou com o lixo cuspido no areal? Muito mais divertida do que estas minhas queixas é a dúzia de poemas longos no livro de António Ferra, poemas narrativos, como é usual dizer-se daqueles que nos contam estórias sem estarem preocupados com a maquilhagem das personagens. Poemas quotidianos, talvez, por captarem o dia-a-dia sem indagações metafísicas nem artifícios nostálgicos, sem saudade do que era e não volta a ser nem inquietações com o que ainda não é. A filosofia destes poemas é um presente em trânsito.
O longo poema inicial vale por si só uma visita ao bairro periférico da luz. Nele encontramos um vendedor door-to-door (em inglês fica mais moderno) de software, de regresso a casa, às voltas e voltas na esperança de arranjar estacionamento para o carro. Um redemoinho de pensamentos vêm-lhe à tona enquanto circula em marcha lenta e as horas passam. Ele que tem a vida engatada em terceira, não gosta de perder tempo com conjecturas e apenas sonha «com uma garagem de penas / para estacionar a alma» (p. 9), vê as horas passarem enquanto anda Às voltas à procura de lugar para estacionar o carro. “Estacionamento” é um daqueles poemas cuja simplicidade da linguagem não descura em nada a complexidade do que se subentende numa estrutura repetitiva, como em certa música dita minimalista ou em algumas peças de Beckett que exploram o inútil da existência fazendo-nos pensar que o mais exacto dos epitáfios seria: a vida é uma perda de tempo. O sujeito poético do poema contratou consigo mesmo não pensar no futuro, ainda que esteja farto de andar à volta de si mesmo. Tal como o carro que anda às voltas do bairro, ele anda à volta de si mesmo, olha para os muros do autoconfinamento (chamemos-lhes assim) e diz: «A noite ainda é longa, vou acelerar, / agora já estou mesmo sem paciência, / talvez pelo mal-estar causado pela velocidade destes pensamentos / sem poderem estacionar num canto recôndito da alma. // Mais à frente, na zona de prédios altos, de uma dúzia de / andares por bloco, reparo que não há varandas. / É um incómodo tão grande a ausência de / flores, mesmo aquelas em que não reparamos, porque são / politicamente irrelevantes. / Pensando bem, é impossível encontrar lugar para / estacionar os automóveis de tantas habitações / a que chamavam fogos mesmo que não ardam. / Mas aquelas fachadas lisas, só com janelas planas, são / a angústia de não ter espaço para existir e apenas sonhar / com rosas de jardim. / Não há zonas de varandas com sardinheiras pendentes / para aliviar o peso dos dias pagos a crédito» (p 19).
Se em cada um dos poemas que compõem este livro podemos ver um monólogo, não seria má ideia que alguém neles pegasse um dia para em palco dar vida às personagens que neles foram fixadas. Este vendedor de software e a alternadeira do poema “As Pernas da Vanessa” são dois quadros imprescindíveis de uma fauna que passa despercebida pela vida mas não escapa ao olhar atento de certos poetas. António Ferra é um deles. Falhados, meliantes, rufias, gente comum, são o magma desta poesia das noites suburbanas, microcosmo de uma humanidade periférica como a luz que ilumina o poema.
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