Quando o vírus SARS-CoV-2, comummente conhecido como
Covid-19, ainda era apenas coronavírus, li algures aventada a hipótese desta
pandemia se transformar para a China no que o desastre de Chernobil significou
para a URSS. Não entendi a relação. Iria a Grande Muralha da China derruir com os efeitos da pandemia? Passados alguns meses, encontro entre
os dois acontecimentos um ponto de convergência: ambos estão relacionados com modos de interacção entre o ser humano e a natureza, interacção essa indissociável da ideia de progresso e de desenvolvimento que há muito adoptámos. Alguns filósofos dizem que tem a sua origem em tempos bíblicos,
nomeadamente quando Deus, antes de se ter arrependido de criar o ser humano, lhe ordenou que tivesse poder
sobre os outros animais. A parábola é estimulante, oferece ao homem a capacidade de exercer na terra o mesmo tipo de domínio e de poder que Deus exerce sobre o homem. Feito à
imagem e semelhança do Senhor, o ser humano teve aí a porta aberta para um
caminho de afastamento e de separação da natureza. Toda a ideia de progresso e de desenvolvimento nas sociedades de inspiração judaico-cristã assenta neste princípio
de domínio sobre o outro, daí que tenhamos adoptado o slogan “vai ficar tudo
bem” como meta de esperança para uma humanidade capaz de se superar dominando
as ameaças que se lhe opõem. Desta feita, como já antes sucedeu, a ameaça é um vírus
invisível, mas podia ser a nuvem negra de uma catástrofe nuclear.
A melíflua palavra de ordem do “vai ficar tudo bem” tem não só a função de trazer esperança
aos desesperados, como a de anunciar uma salvação sob a forma de vacina ou
outra coisa qualquer. Não sabemos o quê, só sabemos que vai ficar tudo bem.
Resta perceber em que Terra Prometida irá ficar bem uma sociedade cada vez mais
amedronta perante a possibilidade de ser ela mesma parte integrante da
natureza, agora confinada, apartada, alienada, como quiserem, por respeito a
declarações e a decretos que vão da emergência à calamidade sem nunca perderem
do horizonte a grande ameaça apocalíptica. Se o sedentarismo vem de há muito
vencendo a guerra, com o natural contributo, em plena revolução tecnológica, de
inúmeros gadgets, não é de todo improvável que a médio prazo ele dê lugar, já
não apenas a uma fixação territorial, mas a uma completa desagregação do
chamado convívio presencial. Porque este adquiriu entretanto a configuração da
morte. Se já dantes era ameaça, obrigando a cuidados redobrados nas ruas da metrópole, nos grandes ajuntamentos, não fosse o outro-depredador atacar o eu-presa, agora é a figura da morte ela
mesma, travestida de vírus chifrudo com sua foice de segar.
Num curto artigo recentemente
publicado na muito recomendável revista Flauta de Luz, Raoul Vaneigem usa uma bela imagem para
esta realidade do confinamento: «Do lado de fora, o caixão, do lado de dentro,
a televisão, a janela aberta para um mundo fechado!» Sobre este mundo fechado
há muito a dizer, mas tentarei encurtar o raciocínio saltando já para os
efeitos que o mesmo parece produzir no indivíduo. Ele consiste, desde
logo, numa abdicação absoluta do privado (entendido aqui no sentido estrito da
pessoa humana, da sua vida privada), à qual advém uma despersonalização do indivíduo,
devidamente fardado e uniformizado como podemos observar na distopia orwelliana
ou na utopia norte-coreana, tendo como princípio geral a aceitação das regras
do algoritmo que determina e legitima o que pode ser avistado através da tal
janela aberta para um mundo fechado. Se nos pedem/exigem “distanciamento
social”, há muito não nos vêm impondo outra coisa que não seja desapego
crítico. Porque a vida é confronto, é descoberta, é experiência, é teste, é,
sobretudo e talvez mais importante do que tudo, erro, este novo acriticismo
onde o erro não tem lugar e o outro fica sem cheiro nem toque, asséptico,
distante, leva a uma reconfiguração da normalidade que faz de cada ser humano
uma espécie de monstro, zombie ou fantasma. É o homem-bibelô, a estátua que apenas se diz viva por ainda lhe restar a capacidade vital do consumismo.
Essa coisa a que se dá o nome de “novo
normal”, sem se entender o que significa, tal como não se conhece o
significado de “desconfinamento”, mas é como se se conhecesse, porque a todos é devido aceitar sem questionar, assimila-se, usa-se e
propaga-se como um vírus aparentemente anódino. Para esse dito “novo normal”,
dizia eu, encontramos uma metáfora profética na fantasmagoria encenada em
algumas peças de Jean-Pierre Sarrazac. Em “A Paixão do Jardineiro”, por exemplo,
uma velha judia fala do limbo ao seu assassino, jovem jardineiro com
simpatias neo-nazis, na esperança de que ele tome consciência do mal que fez ao
assassiná-la. Podemos supor que todo aquele conflito é interior, que tudo se
passa na cabeça do jovem jardineiro, que a hipótese de arrependimento é um
paradoxo moral que o traz angustiado no cárcere onde cumpre pena. «Peço-te,
dá-me razões para te perdoar», roga a vítima ao carrasco, inflectindo o
discurso de Jesus quando fala ao pai, mas de algum modo repetindo o nosso face ao Estado.
«Personagens estranhas numa época
estranha», a velha senhora e o jardineiro recordam-nos, pela voz daquela, que
não passam de pó, mero efeito, poeira varrida para debaixo do tapete, que é, sem
dúvida, o gesto mais facilmente reconhecível neste “novo normal”. Vai tudo
passar, depois esquecemos e seguimos as nossas
vidas. A fórmula é eficaz, tão eficaz que tem resultados à vista: a desmemória é o mais evidente e pernicioso de todos, pois vem acrescentado de um perigo maior que é o da manipulação da verdade. «Nós somos náufragos amnésicos. Nós vivemos num mundo que se
afundou. Mas esquecemo-nos de que a catástrofe aconteceu.» Onde é que eu já li
isto? Não é desta desmemória que se fazem valer os novos populismos, tanto no
modo como apresentam a História, truncando-a, desapropriando-a de contexto,
como até numa metodologia comunicacional cuja falácia mais comum é a da indiscutibilidade
de um ponto de vista. Ora bem, num mundo onde as opiniões são como os “likes”, não
se discutem, que podemos esperar de massa crítica? Nada. A regra é esquecer para continuar, não olhar para trás, como tantas vezes se ouve a quem nem para trás nem para a frente, apenas para a biqueira dos sapatos.
Este nada, este
apocalipse, encontramo-lo retratado em “Neo, Três Painéis de Apocalipse”,
um tríptico onde a terra, o inferno e o céu se misturam e confundem, colocando
cada uma das personagens no tal lugar fantasmagórico que agora nos cabe em
vida. Vida-limbo. Vida-fantasma. Vida-confinada. Não-vida. Também eu me coloco a possibilidade de exagerar no diagnóstico, mas que
outra coisa são senão fantasmas esses milhares de corpos que supomos dentro de
caixões atirados para valas comuns fotografadas aereamente com recurso a
drones? E que outra coisa são senão fantasmas os de nós, confinados, que assistem
a tudo isto em casa, pelo televisor, pelo ecrã de um smartphone ou de um
computador, enquanto jantamos frango com batatas fritas? Curiosamente, na peça
de Sarrazac, também há desfiles de caixões rudimentares, como os de papelão no
Equador, e quem os observe: «Desfilam uma última vez diante de nós os vivos.»
Os cenários de devastação contrastam com os seus agentes fanfarrões,
seja o arrivista chefe de cozinha que acaba
pendurado pelo pescoço, seja o grande matador, à laia de
exterminador implacável, que acerca da morte nos lembra: «That’s business. That’s life.» Pelo meio, o
absurdo de uma mulher muda que avisa dois jovens imprevidentes e porventura sonhadores:
«Que o vosso medo vos proteja!»
Vindo de um fantasma, este conselho tem a sua
ironia: «Que o vosso medo vos proteja!» Logo de seguida o cenário é uma sala-bunker, espaço proteccionista onde, aparentemente, estaremos a salvo da
calamidade espreitada à varanda (talvez já sem sonhos nem utopia nem vontade de mudança, apenas um comodismo conforme o tal "novo normal"). Como é de todos sabido, Deus fez-nos à sua imagem e
semelhança não descurando, porém, que sendo semelhantes a Ele fôssemos
desiguais entre nós. Daí que nem todos tenham varanda, daí que nem todos possam
abancar nos seus bunkers privados e devidamente mobilados observando a morte pelo buraco da fechadura. Há
deles, entre nós, que têm mesmo de dar um passo para lá da soleira da porta, eventualmente
mascarados por uma terceira pele, mas, ainda assim, do lado de fora, na rua, a
uma distância profiláctica desse grande mistério que é o outro. O grande
edifício do pânico está montado. Sobre ele apetece dizer, para terminar, tal
como o desiludido que há 35 anos espera numa sala de um aeroporto: «Queiram
desculpar-me mas eu não resisto ao impulso de vos dizer o que sinto neste
momento… Confusão profunda. Uma horrível sensação de vacuidade.»
A Paixão do Jardineiro/Neo, Três Painéis de Apocalipse, de
Jean-Pierre Sarrazac, com tradução de Isabel Lopes, é uma edição da Companhiadas Ilhas em colaboração com o Teatro da Rainha. Suponho que ainda esteja
disponível para encomenda, quer no editor, quer no próprio teatro. Ambos têm
páginas on-line com os respectivos contactos.
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