Não sei, minhas filhas, o que viver bem possa ser.
Suponho que para morrer bem devíamos todos morrer a dormir. Mas viver bem, como
pode alguém saber qual a melhor forma de viver? Não se vive senão vivendo-se, e
a vida cumpre-se diariamente com seus humores, suas comédias e suas tragédias,
seus dissabores e suas aventuras. Por vezes, num só dia, numa só ida, são tantas as emoções
vividas, e tantas e tão acentuadas as curvas no electrocardiograma, que 24 horas nos parecem a vida inteira. E talvez a vida não seja senão esse intervalo
entre o sol surgir a oriente e desaparecer a ocidente, com o céu ora limpo, ora
atravessado de nuvens finas, ora estrelado, ora ocultado por um véu de névoa.
Passa num instante, que por vezes olhamos para nós e é como se
estivéssemos a ver estrelas mortas luzindo num céu escuro como breu. Bem sei,
minhas queridas, que não gostais de falar da morte. Como não aceitar tamanha repulsa,
tanta a vida que tendes pela frente? Mas talvez por isso mesmo convenha
falar-vos do mais angustiante dos temas. Muita gente passa a vida a fugir da
morte e é como se já estivesse morta, há pessoas que optam por fugir da vida e é
como se nunca tivessem estado vivas. De um modo ou de outro, talvez seja justo
reconhecermos que a vida é em todos uma fuga. Uns fogem dos medos que os
perseguem, outros fogem do tédio que os aprisiona, há quem fuja de uma infância
traumatizante e quem se veja obrigado a fugir de um presente ameaçador. Talvez
seja esta a essência de viver, uma fuga constante de algo que nos persegue e
ameaça. Se assim for, não será tão triste que desperdicemos a vida fugindo do
que mais temos por certo? E que mais certo haverá na vida do que a morte? Daí que me
pareça apaziguador, embora a princípio reconheça que talvez vos possa parecer tormentoso,
abraçar o absurdo da vida aceitando a inevitabilidade da morte. São terríveis
as coisas que se fazem em nome da perpetuação de um nome, são terríveis e
criminosas as coisas que se fazem em nome de um elixir da eternidade que mais
não é do que a memória afagando o esquecimento. Tomai pois de exemplo este
homem de nome Gesuniala que, certa manhã, resolveu deixar de fugir, optando por simplesmente sentar-se à espera da morte. E que viu ele enquanto esperava?
Viu a vida inteira passar-lhe à frente como quem assiste a um filme e vê
correr, fotograma a fotograma, todas as tragédias e conquistas da humanidade.
Esperar, em vez de fugir, também é um modo de viver. Tem as suas consequências,
é certo, tem o seu preço, pois ninguém compreende aquele que espera. Como pode aquele
que foge compreender quem espera? Neste livro que agora vos entrego, “A Morte
Lenta” não é lenta por ser dolorosa como amargurada é a doença. A lentidão é a indiferença com que a morte brinda quem dela aprendeu a não fugir. Talvez o
velho Gesuniala que o escritor Saguenail (n. 1955) imaginou prefira esperar
pela morte a arrastar-se na inutilidade de uma vida de trabalhos e de afazeres, uma
vida desperdiçada com deveres e obrigações cujo fim último será distrair-nos de
que há um termo para tudo. Talvez naquele esperar descanse a liberdade que escapa tanto ao escravo
inquieto como ao senhor desassossegado, já que pela espera se supera a
dialéctica que opõe quem manda e quem é mandado. Eis uma opção de vida que não
merece censura: «Mas uma dúvida profunda atormenta Gesuniala. Eu que pensava
não ter mais nada a ver nesta vida, dou comigo a apreciar este atraso da morte,
este adiamento que ela me concede. Viver, será, no fundo, tão-só esperar?»
Gesuniala é o homem que transcende o colectivo, que está para lá de um projecto
social, é em si mesmo a negação desses projectos colectivos que se alimentam
das fugas individuais. Num mundo em que todos esperássemos, minhas filhas, acabava-se
a produção e, acabando-se esta, desapareceria a avidez, pelo que muitas vezes
ides ouvir ao longo da vida gente horrível que vos dirá não gostar de esperar ou de ficar à
espera. Quem espera, desespera. Mas se desespera, não é tanto porque espera mas
porque anseia fugir. Gesuniala é uma espécie de monge abnegado que não se
fundamenta na renúncia nem na indiferença, mas apenas e tão-somente na entrega
a uma espera que só o nada pretende alcançar:
Gesuniala espera. O desespero de sobreviver não lhe
permite adormecer. Depois de dar voltas e mais voltas sobre o seu tapete,
desiste de dormir. Levanta os olhos e contempla as estrelas. É uma noite sem
lua e elas brilham ainda mais, incrivelmente próximas, varando os olhos.
Gesuniala estende a mão; bastariam umas polegadas para ele conseguir
agarrá-las. Que paz! Que indiferença! As estrelas não se preocupam nada com as
nossas guerras. Observam a terra e provavelmente só vêem um grão de poeira, um
berlinde liso, uma ágata iriada lançada no espaço. Como poderiam elas conceber
a nossa existência? E ainda menos as nossas triviais e mesquinhas preocupações.
Cintilam mas evitam iluminar as nossas devastações. Debaixo de um céu assim,
parece que estamos na estação dos amores, no tempo das cerejas e dos desejos.
Nesse instante do seu devaneio, Gesuniala vê uma estrela cadente riscar a
noite. Infelizmente já não tenho nenhum desejo a formular. As cerejeiras
arderam e já não há apaixonados para te dirigirem pedidos. E no entanto
Genusiala sente o coração a jubilar sem motivo. Espera pela próxima estrela
cadente, excitado como uma criança. Fita tão intensamente o céu estrelado que
sente os astros a incrustarem-se nas suas retinas. Quando o horizonte começa a
clarear, Gesuniala vê sem tristeza as estrelas apagarem-se. Colheu nelas luz
suficiente e quando pousa na planície desolada, o seu olhar espalha paz.
Saguenail, in A Morte Lenta, traduzido por Regina
Guimarães, com ilustrações de João Alves, Douda Correria, Dezembro de 2018,
s/p.
4 comentários:
Lindo e verdadeiro; simples e enigmático esse texto!
Grato pelo comentário.
Gosto mesmo muito dos textos "100 Livros Para as Minhas Filhas". Este "#29" é daqueles que a gente gostaria de levar à leitura de tantas pessoas (!), sobretudo daqueles que nos são mais próximos. Muito importante e bonito.
DRB.
Obrigado DRB.
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