BALANÇO DA POESIA PORTUGUESA
NA SEGUNDA DÉCADA DO SÉCULO XXI
(2011-2020)
Notas
Prévias
O balanço que me é pedido coloca duas
dificuldades:
1.ª
— Ainda estamos muito em cima da década que nos propomos comentar. O
distanciamento favorecerá uma panorâmica, alargará os horizontes e permitirá
que as leituras amadureçam, transportar-nos-á do interior dos acontecimentos
para o lugar privilegiado de observadores. Tudo quanto possamos dizer acerca
desta década que passou está enfraquecido pela proximidade. Seria mais fácil
uma panorâmica do século XX, por exemplo, do que é um balanço de uma década que
ainda está a ser vivida.
2.ª
— Um balanço, seja ele qual for, consiste num confronto entre teórico e
factual. Neste caso, o teórico corresponde à poesia que devíamos ter lido. O
factual, corresponde àquela que nos foi possível ler. Como só podemos falar
daquilo que conhecemos, fica desde já a advertência: o que ignoro é
infinitamente superior ao que conheço. O que julgo conhecer é
incomensuravelmente inferior ao que, com o passar dos anos, poderei vir a
aprender.
As
Perdas
Começo por evocar duas perdas que julgo
terem exercido um papel determinante nos últimos 50 anos da poesia portuguesa, curiosamente
ambos desaparecidos no mesmo ano, a meio da mesma década: o poeta Herberto
Helder (23 de Novembro de 1930 – 23 de Março de 2015) e o editor Vitor Silva
Tavares (17 de Julho de 1937 – 21 de Setembro de 2015).
Vitor Silva Tavares foi, no plano da edição
de poesia em Portugal, mas não apenas na edição de poesia, uma referência singular.
Entregou-se corajosamente à publicação de livros que sabia comercialmente
fracassados, aliando um amor ao livro, enquanto objecto, que resultou no mais belo
catálogo de que há memória em Portugal. São livros com uma identidade própria,
hoje e para sempre reconhecíveis quando nos referirmos à &etc. A sua
dedicação é hoje exemplo, nem sempre bem compreendido, para inúmeros pequenos
editores.
Herberto Helder foi o mais influente dos
poetas portugueses na segunda metade do século XX. Estreou-se em 1958, na
Contraponto de Luiz Pacheco (7 de Maio de 1925 – 5 de Janeiro de 2008), chegou
a editar na &etc no decorrer da década de 1970, vindo a transformar-se num
autor fulcral tanto pelos epígonos que gerou, todos piores do que original, como
pelos ódios que inspirou, mas também pela necessidade que a sua obra impôs de
se encontrar um registo poético alternativo ao seu. A este propósito, sugiro
que se releia a carta aberta que lhe foi endereçada por Joaquim Manuel
Magalhães (n. 1945) aquando da publicação de
Photomaton & Vox (Assírio & Alvim, 1979). Nela se diz: «Poucos
podem ter a honra de ter mais inimigos do que você. Inimigos como eu, a
considerá-lo um dos maiores, mas a fazer tudo por causa disso, por o combater
naquilo que me leva à escrita» (In Os
Dois Crepúsculos, A Regra do Jogo, 1981, p. 131).
Os Fenómenos do Entroncamento
Herberto surge associado a um de três
fenómenos do Entroncamento que quero recordar. Como sabeis, os fenómenos do
Entroncamento dizem respeito a revelações extraordinárias, como sejam o
nascimento de carneiros com quatro cornos ou o desabrochar de abóboras com 60
kg. A poesia não escapa a este tipo de ocorrências. Temos assim que:
1
— Em Maio de 2013, um livro de Herberto Helder, o último que publicou na editora
Assírio & Alvim, transformou-se num fenómeno de vendas incomparável, pela excitação
causada junto dos agiotas de raridades, os quais acorreram às livrarias
adquirindo a edição única previamente anunciada para, no próprio dia em que
ficou disponível, encontrar-se à venda nos escaparates intergalácticos com
inflações na ordem dos 100, 200, 300, 400% sobre preço de capa. A maior rede de
livrarias do país teve inclusive que limitar um número máximo de exemplares por
cliente, racionando, pela primeira vez que me recorde, a venda de um livro de
poesia. Esta procura inusitada teve desenvolvimentos deliciosos. Repare-se:
a)
em Novembro de 2010, o dono do maior grupo editorial português deu uma
entrevista ao Público vaticinando, e passo a citar: «Se me perguntar se
daqui a dez anos ainda se edita poesia em Portugal, eu dir-lhe-ei que não.
Quando muito teremos algumas edições artesanais. Mas continuaremos a ter poesia
via e-books ou através do “print on demand”»;
b)
este mesmo visionário, de seu nome Vasco Teixeira, surgiu em Agosto de 2011 a
anunciar a compra da editora Assírio & Alvim pela Porto Editora. Logo a
Assírio & Alvim, fundada em 1972, que durante décadas foi só, e ainda é, uma
das mais relevantes editoras de poesia em Portugal;
c)
em 2019, o escritor valter hugo mãe, ex-editor das Quasi Edições, aparece a coordenar
uma colecção de poesia — Elogio da Sombra — na mesma editora onde publica a sua
obra desde 2013, ou seja, a Porto Editora.
Disto tudo se conclui que a edição de poesia
em Portugal, afinal, também interessa aos tubarões, não é uma excrescência da
literatura que definha em circuitos obscuros.
2
— Menos interessante do que o anterior, mas igualmente revelador, o segundo
fenómeno que pretendo recordar teve como protagonista o escritor Gonçalo M.
Tavares (n. 1970) e a publicação, em Outubro de 2010, da “anti-epopeia”
intitulada Uma Viagem à Índia. Este
termo, “anti-epopeia”, decalca um dos conceitos que Eduardo Lourenço usou para se
referir ao livro em causa no prefácio que o antecedeu. Lourenço falou ainda de
«prosaico poema, antipoema e híper-poema», «poema provocantemente épico e
anti-épico». Seja lá o que for esta Viagem
à Índia, certo é estarmos no território da poesia. Sucede que a este mesmo
livro de poesia foram atribuídos, se a contabilidade não me falha, o Grande
Prémio Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, o Prémio
Fundação Inês de Castro, o Prémio Literário Fernando Namora, o
Prémio Especial de Imprensa Melhor Livro Ler/Booktailors, o Prémio Melhor Livro
de Ficção Narrativa da Sociedade Portuguesa de Autores, o Prémio Portugal
Telecom de Literatura. Isto faz do livro assinado por Tavares o «híper-poema»
mais premiado da década que passou. A consequência foi termos iniciado a década
com um livro de poesia no Top de Vendas das maiores redes livreiras do país,
algo que raramente acontece (assumindo, está claro, que se trate de um livro de
poesia).
3
— Por fim, e já sem quaisquer dúvidas de género, há que mencionar o fenómeno
Matilde Campilho (n. 1982). É uma jovem poeta cuja estreia em livro causou
entusiasmo invulgar. Jóquei
(Tinta-da-China, Abril de 2014), publicado numa boa colecção coordenada por Pedro
Mexia, empolgou, como nenhum outro livro de poesia da última década, a chamada
imprensa especializada. Sucessivamente reeditado, sobre ele tudo e mais alguma
coisa se escreveu. Recentemente, o anúncio do segundo livro da mesma autora
mereceu 8 páginas de publicidade no suplemento cultural do jornal Público. Isto
é inédito. Nada de parecido descobrimos, seja na última década, seja nas
anteriores, muito menos tratando-se de uma jovem autora com apenas dois livros
publicados. Não me cabe especular sobre as razões que poderão estar por detrás
deste fenómeno, outros já o fizeram e continuarão a fazê-lo. Pretendo apenas
assinalá-lo pelo que tem de surpreendente.
A
Internet
O fenómeno Matilde Campilho serve-me, no
entanto, para fazer a ponte entre o passado e um presente que se impõe como
terreno a partir do qual o futuro irá, por certo, se desenvolver. Refiro-me à
progressiva presença da Internet nas nossas vidas. Tal como muitos poetas novos,
a autora de Jóquei começou por
publicar em revistas on-line. No
caso, um canal de YouTube (macmakuu) e o weblog
colectivo brasileiro Modo de Usar & Co. serviram para promover os seus
poemas junto de um público que se foi deslocando, nos últimos anos, dos jornais
e das revistas em papel para o on-line.
Os weblogs,
logo no início deste século, e as redes sociais, um pouco depois, transformaram-se
em plataformas decisivas na última década. A net é hoje um viveiro de novos autores e de redescobertas onde as
editoras vão pescar muitas das suas propostas, é um veículo de comercialização
dos livros que se vão publicando, permitindo aos editores uma relação directa com
os leitores, e é, ao mesmo tempo, um lugar de julgamentos exacerbados e de
partilha de leituras e de descobertas informais.
O lado bom disto é a facilidade de contactos
que a rede possibilita e a diversidade de linguagens que nela se descobre. O
lado mau é o ruído e a urgência que dificultam leituras pausadas, concentradas,
reflectidas. Ainda assim, julgo que devemos assinalar alguns espaços
acolhedores de divulgação ou iniciativas de difusão que contribuem, cada qual à
sua maneira, para que a poesia vá sendo lida, ouvida, falada, discutida. São
disso exemplo:
-
O Poema Ensina a Cair, uma iniciativa
da jornalista Raquel Marinho que começou no jornal Expresso e se foi depois
ramificando pelas redes sociais e no formato podcast.
-
O weblog Enfermaria 6, editado, salvo
erro, desde 2013, a partir do qual surgiu um projecto editorial colectivo já
com vários livros individuais publicados (destaco, por exemplo, os de Tatiana
Faia e de José Pedro Moreira, dinamizadores, desde a primeira hora, desta
plataforma);
-
A revista de Letras, Artes e Ideias Caliban,
publicada desde 2015, onde podemos deparar com um interessante arquivo de
recensões (não só de poesia);
-
A revista A Bacana, publicada desde Março de 2018, com uma ampla divulgação de
poetas muito mais novos, alguns ainda sem livros físicos editados, portugueses
e brasileiros.
Os cafés
Uma outra consequência desta deslocação para
o virtual é a percepção de que a “vida literária nos cafés” desapareceu. O
poeta Mário Cesariny, pouco antes de morrer, era do que mais se queixava, dessa
deserção e desse abandono da vida nos cafés. «Nunca escrevi um poema em casa»,
dizia. Os botequins internéticos, isto é, as redes sociais, surgem higienizados
pelo distanciamento, mas altamente conspurcados pelo anonimato, pelos perfis
falsos, pela estigmatização. São espaços que alteram literalmente os processos
de comunicação, gerando equívocos vários e malhas de afectuosidade mais ou
menos artificiais e histéricas. Na ausência de voz, de rosto, na falta de
“corpo visível”, o debate tende a reduzir-se à provocação, ao insulto,
fomentando ódios patéticos, ridículos, inúteis, inconsequentes. Não só nada tem
de estimulante, como encalha numa impossibilidade de controvérsia minada por um
espírito crítico deficiente, fechado à diferença, intolerante ao contraditório.
Como acções de resistência a este vazio
encontramos diversas iniciativas, de norte a sul do país, que promovem o
encontro, insistem teimosamente na confraternização, no diálogo cara a cara. Tivemos,
deste modo, na década que passou, uma dinâmica muito intensa de sessões de
leitura ao vivo, encontros para lançamentos, residências literárias, conversas
com poetas, editores e críticos, fosse em contexto de tertúlia ou festivaleiro,
de que não sou especial adepto, fosse em sessões mais intimistas ou mais expansivas.
Lembro a curiosidade fomentada pela
realização do Festival Mal Dito, em Coimbra, nos anos de 2013 e 2014, as
Quintas de Leitura no Porto, que continuam a realizar-se, tal como as sessões
de leitura nos bares Pinguim e Piolho, na mesma cidade, recordo o Poesia às
Quintas, de Miguel Martins, no bar do teatro A Barraca, os Poetas do Povo, no
Cais do Sodré, as leituras do Nuno Moura e do António Poppe no bar Irreal, os
encontros promovidos pelo Jaime Rocha na Biblioteca da Nazaré, o trabalho que
tem vindo a ser desenvolvido na EC.ON, as tertúlias na saudosa livraria do
Miguel de Carvalho, em Coimbra, as residências "Poesia, um dia", organizadas pela Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão, etc, etc, etc.
Outras, muitas e diversas, iniciativas podiam
e deviam ser mencionadas. Surgem-me automaticamente estes exemplos, pela
vontade de sublinhar este resgate da poesia para uma vida desconfinada. Desconfinada
do virtual, onde irremediavelmente se instalou, e desconfinada das academias, onde sempre esteve, mas nunca, como
hoje, dando origem a tanto poeta com licenciaturas, mestrados e doutoramentos
em letras e literaturas. Esta abertura à sociedade é fundamental. Tornar
público não é estar acima do público, é misturar-se com ele.
As
revistas
Outro factor de congregação, eficaz enquanto
núcleo aglutinador de afinidades e de cumplicidades, é a publicação de
revistas. Não é novidade para ninguém que estas perderam o carácter que outrora
tiveram de demarcação de um território estético, impondo tendências e
confrontando a ordem dominante com novas propostas. Talvez o que mais se
aproximou disso, nos últimos anos, tenha sido a revista Telhados de Vidro, cujo
primeiro número data de Novembro de 2003. O mais recente, o 23.º, se não me
falhou nenhum, data de Novembro de 2018. Não deixa de ser curioso constatar que
os únicos poemas traduzidos para português da nobelizada Louise Glück tenham aparecido justamente num dos números
desta revista.
Pensando exclusivamente na última década, vamos
achar revistas que já vinham de décadas anteriores (Di Versos, Relâmpago,
Criatura, etc.) e outras, mais ou menos efémeras, mais ou menos abrangentes,
muito desiguais no conteúdo e na forma. Projecto deveras inovador é o da
Flanzine, que nasce no Facebook em 2013, apropria-se do velho conceito de
fanzine para chegar ao papel e acaba, no último número, num formato pen. De alguma forma ligada a esta
iniciativa vamos topar, em Agosto de 2019, com os dois primeiros números de uma
nova colecção de poesia, denominada elemeNtário,
e publicada pela editora Flan de Tal do editor e poeta João Pedro Azul.
Esta ponte que leva da publicação de
revistas ao surgimento de editoras não é nova e está longe de ser caso único.
Exemplo disto mesmo é a Eufeme, surgida em Setembro de 2016 e com uma
impressionante regularidade (17 números à data em que escrevo). É uma revista
de poesia portuguesa e de poesia traduzida, reúne um largo espectro de autores
de diferentes gerações, e tem tido a capacidade de transportar essa
heterogeneidade para um catálogo de livros que vem sendo construído desde 2017.
São publicações com uma distribuição que estaria à partida condenada, não fosse
a tal capacidade de contacto directo que a presença na Internet veio facultar
e, sobretudo, a abnegação dos seus editores. Neste caso o mérito deve-se a Sérgio
Teixeira, que assina os seus trabalhos com o pseudónimo Sérgio Ninguém.
Outros exemplos são as revistas Tlön,
publicada por Luiza Nilo Nunes desde 2016 (4 números à data em que escrevo), ou
a Nervo, de Maria de Fátima Roldão, com um primeiro número em 2018 (9 números à
data em que escrevo). A revista Cão Celeste, que começou a ser publicada em
Abril de 2012, muito na linha editorial da Telhados de Vidro, vai já em 13
números, apresentando um vasto elenco de poetas que reencontramos nas edições
das editoras Averno e Alambique. Outra revista de poesia, ensaio e crítica
muito bem organizada é a Cintilações, publicada pela editora Labirinto. O
terceiro número saiu em Junho de 2019.
Temos ainda revistas extintas ou adormecidas,
tais como o fanzine Piolho (27 números entre 2010 e 2019), a revista Ítaca (3
números entre 2010 e 2011), a revista Golpe d’Asa (2 números entre 2011 e
2012), um número único da Agio em Fevereiro de 2011, que terá servido apenas
para inaugurar o catálogo da editora Artefacto, a Apócrifa, direccionada para a
divulgação de novos autores, que começou a ser publicada em 2014 (8 números, se
não me engano, até 2018).
As
Antologias
Se é justo falar numa enorme dispersão de
nomes nestas publicações, tanto no formato físico como no virtual, não deixa de
ser verdade que a essa dispersão corresponde uma estranhíssima lacuna.
Refiro-me à ausência de uma antologia de poesia portuguesa contemporânea que
conseguisse oferecer aos leitores uma panorâmica, rigorosa e neutra, do que vem
acontecendo na poesia portuguesa mais recente.
Presumo que existam várias razões que
contribuem para a explicação desta lacuna. Uma delas será o custo/tempo
que implica a realização de um projecto deste género. Outra será as desavenças
que levam a leituras facciosas, as quais pretendem impor-se pela exclusão de
possibilidades de escrita. Assim sendo, está por realizar um trabalho de
selecção abrangente que pudesse ser representativo da poesia publicada em
Portugal nos últimos 50 anos ou, se quiserem, da poesia que foi sendo publicada
já em democracia e continuou a surgir no meio desta revolução tecnológica que
estamos a viver.
Poemas Portugueses – Antologia da Poesia Portuguesa do Séc. XII ao Séc.
XXI,
que veio a lume, em 2010, com o selo do maior grupo editorial português, não
garantiu a supressão de falhas graves naquelas 2000 páginas. Exemplo flagrante
disso mesmo foi a ausência de um poema de António Barahona (n. 17 de Janeiro de 1939). Mesmo não se
tratando de uma antologia de poesia contemporânea, Poemas Portugueses teve pelo menos o mérito de fazer perceber o
modo deficiente com que se olha para a contemporaneidade. Anos 90, e Agora, publicada no primeiro ano deste século pelas
Quasi Edições, é outro exemplo dessa deficiência. Os volumes a que se deu o
título de Resumo, publicados entre
2010 e 2014, parcerias da FNAC com a Assírio & Alvim, primeiro, e com a
Documenta, depois, são outro exemplo desse olhar parcial e sectarista que acaba
por viciar a interpretação que se possa fazer de uma época.
Sobram-nos as antologias temáticas, sem
quaisquer propósitos de significação geracional, mas, pelo menos, com uma
multiplicidade de registos abonador da individualidade poética de cada um. E
sobra-nos, em matéria de antologias, a excepção na última década que foi Voo Rasante, coordenada por Helena
Vieira, editora da Mariposa Azual, e publicada em Fevereiro de 2015. Nesse
volume conseguiu a sua coordenadora reunir cerca de 70 autores, nem todos
portugueses, nascidos entre as décadas de 1950 e 1990. Não é perfeito, nunca
será, mas já foi alguma coisa.
Acabada de sair com o selo da Língua Morta,
uma antologia intitulada Ao Ouvido de um
Moribundo (Novembro de 2020), organizada por Nuno dos Santos Sousa, coligiu
40 autores nascidos entre 1899 e 1973. É um volume pertinente, heterodoxo,
sobretudo pela capacidade que demonstra de trazer para primeiro plano poetas
fundamentais da língua portuguesa que são reiteradamente varridos para debaixo
do tapete pelos zeladores do chamado cânone. Refiro apenas dois, um já
falecido, outro ainda vivo, que considero imprescindíveis: João Pedro Grabato
Dias (n. 9 de Julho de 1933 - m. 2 de Julho de 1994) e Fernando Guerreiro (n. 1950). E refiro um terceiro, de que já falámos hoje, que é
diversas vezes mencionado ao longo desta antologia, e julgo estar ainda para
nos dar algumas surpresas enquanto poeta: o saudoso editor Vitor Silva Tavares.
A
Proliferação de Editoras
Um dos aspectos mais extraordinários da
última década em matéria de poesia é, no entanto, a proliferação de pequenas e
médias editoras que vieram dar resposta ao vaticínio do fim da edição de poesia
em Portugal. Não só se tornou impossível acompanhar tudo o que vai sendo
publicado, como é da ordem do espanto que num país com 10 milhões de
habitantes, em que metade não lê livros e a metade que lê compra, em média, 1
livro por ano, se continue a publicar tanto livro de poesia.
Numa vista de olhos rápida pelas estantes cá
de casa contei cerca de 50 editoras a publicarem regularmente poesia nos
últimos 10 anos. Mesmo que cada uma delas publicasse apenas 1 livro, estamos a
falar de 500 títulos diferentes. Depois temos as colecções de médias editoras e
dos grandes grupos editoriais, os quais não abandonaram por completo a poesia.
Já me referi à colecção da Porto Editora, devedora do trabalho de sapa levado a
cabo por pequenos editores, mas posso também referir a D. Quixote, do grupo
LeYa, que continua a publicar poesia. A editora Relógio D’Água, que tem já uma
dimensão considerável, mantém uma importante colecção de poesia.
É verdade que, no caso das pequenas
editoras, estamos a falar de edições curtas, algumas de apenas 100, 200, 300
exemplares no máximo. Seja como for, a sensação com que se fica é a de que existe,
de facto, um núcleo fiel de leitores de poesia. Muitos elementos deste núcleo
serão eles próprios autores, alguns destes acumularão com a função de editores,
poucos, muito poucos, sobreviverão apenas do trabalho de edição. A paixão e a
carolice são agentes determinantes num cenário deste género.
Seria exaustivo inventariar todas as
editoras que surgiram na última década a publicar poesia com regularidade. Prefiro
sugerir que passem os olhos pela Rede de Livrarias Independentes (RELI) e
busquem nelas esses catálogos, pois são essas livrarias o último reduto de
muitas ou praticamente todas as editoras que iria referir. Muitas dessas
livrarias têm, tal como as editoras, uma razoável implementação on-line. Não será difícil encontrar
nelas alguns dos bons livros de poesia que vão sendo publicados em edições
limitadas, de circulação mais ou menos restrita. Iniciativas como a Mostra de
Edições Independentes em Vila do Conde ou a Feira Gráfica em Lisboa são também
portas abertas ao contacto com este trabalho imenso que vem sendo realizado.
Os livros
O resultado de toda esta actividade são os
livros, muitos livros, inúmeros e incontáveis livros. Arrisco uma selecção, uma
espécie de antologia pessoal, assumidamente arbitrária, que tem por fundamento
apenas e tão-só a minha vontade de contribuir para a divulgação dessa enorme
variedade que caracteriza a edição de poesia em Portugal na última década.
Tentarei, tanto quanto possível, seguir uma ordem cronológica:
-
Mulher ao Mar (Abril de 2010), work in progress de Margarida Vale de
Gato (n. 1973), com reedições revistas e acrescentadas em 2013 e 2018, marca a
estreia em livro de uma voz com raro domínio da língua portuguesa e da arte
poética em geral. Focado na problemática da “condição feminina”, questiona de
modo exemplar o papel cultural e social da mulher evocando exemplos do passado
para com eles se misturar numa justaposição de realidades biográficas.
-
Poeta tardio, Nuno Dempster (n. 1944) publicou poesia e ficção. Não encaixa em
tendências ou movimentos. Pedro e Inês:
Dolce Stil Nuovo (Edições Sempre-em-Pé, Setembro de 2011) é um livro
delicioso, pela forma como desconstrói a lírica amorosa pegando num mito
nacional para o desfazer à luz da actualidade. Foi publicado por uma editora
discreta, de um editor e poeta discreto, José Carlos Costa Marques (n. 1945), a quem
devemos a edição, há mais de 20 anos, da revista DiVersos.
-
Em 2012, Amadeu Baptista (n. 1953), autor de uma vastíssima e muito premiada
obra, deu à estampa na &etc a segunda edição do mais autobiográfico dos
seus livros: Açougue. Dedicado à
memória de sua mãe, percorre uma história pessoal com poemas que remetem para
cada um dos anos de vida do autor. Poeta caudaloso, Baptista reuniu
parcialmente a sua obra num denso volume intitulado Caudal de Relâmpagos (Edições Esgotadas, 2017).
-
Uma tendência que vislumbramos nos editores de poesia surgidos na última década
é a recuperação de vozes esquecidas. Exemplo disso, a edição, no final de 2013,
de Bonsoir, Madame, reunião da poesia
de Manuel de Castro (n. 1934 – m.1971), numa parceria entre a Alexandria e a
Língua Morta, ou a antologia de Eduardo Guerra Carneiro (n. 1942 – m. 2004) publicada
pela Língua Morta com o título Mil e
Outras Noites (Maio de 2018). Sobras
Completas (Abysmo, Outubro de 2016), de José Manuel Simões (n. 1934 – m.
1999), e Filipa (Barco Bêbado, Maio
de 2020), de José Manuel Pressler (n. 1938 – m. 1965), assim como os Poemas Quotidianos (Tinta-da-China,
Julho de 2017), de António Reis (n. 1927 – m. 1991), são bons exemplos desse
trabalho de redescoberta de uma geração riquíssima que se estreou no final da
década de 1950 ou durante a década seguinte.
-
Devedores desse legado, os poetas que aparecem no início do século XXI têm na
poesia de Manuel de Freitas (n. 1972) uma das mais fortes e coerentes
revelações. Ubi Sunt (Averno, Junho
de 2014), publicado na editora que o próprio dirige, é um livro bastante
curioso que desenha uma espécie de genealogia afectiva através de inúmeras
dedicatórias, referências geográficas e culturais, num estilo biografista que o
autor cultivou desde a primeira hora. Traz ainda no final uma tábua
bibliográfica que nos dá conta da impressionante actividade deste poeta nos
últimos 20 anos.
-
Com um primeiro livro publicado na &etc, ainda na década de 1990, José
Ricardo Nunes (n. 1964) é outro autor com uma obra já considerável que conheceu
nos últimos anos vários desenvolvimentos. Andar
a Par (Tinta-da-China, Maio de 2015) é, talvez, o seu melhor livro e, sem
dúvida alguma, um dos melhores editados em Portugal nos últimos 10 anos. Despido
das máscaras exaustivamente dramatizadas em livros anteriores, nesta obra
Ricardo Nunes optou por, num conjunto de poemas mais longos do que é costume,
assumir uma dimensão pessoal em diálogo aberto e intenso com a sua tradição
literária.
-
A par de Margarida Vale de Gato, Daniel Jonas (n. 1973) tem sido dos poetas
mais comprometidos com uma revisitação de recursos poéticos considerados obsoletos.
Observamos esse trabalho oficinal particularmente desenvolvido em livros tais
como Sonótono (Cotovia, Maio de
2007), Nó (Assírio & Alvim, Abril
de 2014) ou Oblívio (Assírio &
Alvim, Outubro de 2017), mas não está de todo ausente em livros menos sujeitos
ao desafiante espartilho da métrica. Bisonte
(Assírio & Alvim, Abril de 2016) é um livro extraordinário que coloca a
poesia ao nível da natureza selvagem, aproximando-a de uma linha romântica
deveras convincente neste nosso malfadado tempo de extinções e apocalipses.
-
Entre os poetas que se estrearam nesta última década, esta face romântica da
poesia enquanto linguagem mais próxima de uma impetuosidade instintiva, de
certo modo até catártica, está também muito presente, embora de um modo mais
visceral, em poetas tais como António Amaral Tavares (n. 1964) e Cláudia R.
Sampaio (n. 1981). O primeiro ganhou o Prémio Nacional de Poesia Diógenes com Talvez Seja Essa Certeza (Medula,
Dezembro de 2014), a segunda estreou-se com Os
Dias da Corja (do lado esquerdo, 2014) e viu, 5 anos depois, a sua poesia
ser reunida num volume publicado pela Porto Editora.
-
Em matéria de “obras reunidas” muito haveria a dizer, começando, desde logo,
pela colecção de "tijolos" que a Assírio & Alvim tem coleccionado de natal
para natal. Antes de mais, julgo importante enaltecer o esforço levado a cabo
por uma editora como a Companhia das Ilhas. Com um catálogo vasto a ser
construído desde 2012, onde a poesia tem sido presença assídua, a editora do
escritor Carlos Alberto Machado (n. 1954) teve o mérito de, em conjunto com a
Imprensa Nacional, voltar a dar atenção à poesia de Vitorino Nemésio (n. 19 de Dezembro 1901 –
m. 20 de Fevereiro 1978), num plano de reedição da obra quase completa que teve início em
Setembro de 2018 com o volume Poesia
(1916-1940). Na mesma Companhia das Ilhas destaca-se igualmente, em Abril de
2019, a mais recente reorganização da poesia do poeta e editor Paulo da Costa
Domingos (n. 1953), num volume intitulado Carmes
(1971-2018). Outro poeta que optou por revisitar de forma radical a sua
obra é Joaquim Manuel Magalhães (n. 1945), sendo Para Comigo (Relógio D’Água, Novembro de 2018) o mais recente
episódio de uma sangria que ameaça reduzir a pouco mais que nada um labor
poético que era, até há não muito tempo, considerado dos mais valiosos dos
últimos 50 anos. Também de assinalar é a edição crítica, em 3 volumes, da
poesia completa de Antero de Quental (n. 1842 – m. 1891). É um trabalho notável
de Luiz Fagundes Duarte (n. 1954), começado a publicar pela Abysmo em Outubro
de 2016. Na mesma editora, em 2016, a excêntrica poesia de José Emílio-Nelson
(n. 1948) foi coligida num volume intitulado Beleza Tocada. Por fim, um livro há muito aguardado sobre o qual
pesam agora duas tristes notícias: o desaparecimento quer do autor, quer da
editora onde o livro saiu. A Poesia
Reunida (Cotovia, Abril de 2018) de Manuel Resende (n. 1948 – m. 2020),
extraordinário tradutor e poeta, é um daqueles casos raros que nos torna a
leitura difícil se quisermos encontrar um poema escusado ou um verso a mais.
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Dois objectos estranhos, aterrados que nem óvnis em solo recôndito, são os
livros Terceira (Douda Correria), de
Nuno Moura (n. 1970), e Ventos
Borrascosos (romance) (Edição do Autor, Novembro de 2019), de Fernando
Guerreiro (n. 1950). Tudo contribui para distanciar estes dois poetas, ao mesmo
tempo que tanto os aproxima. Nuno Moura é editor da Mia Soave e da Douda
Correria, uma das mais activas pequenas editoras surgidas na última década.
Fernando Guerreiro foi editor da Black Sun. Se este é dotado de um sólido saber
académico, aquele tem a experiência das ruas. Cada qual à sua maneira, são
ambos discretos, únicos, singulares. Isto mesmo se nota nestes dois livros, sem
o nome do autor ou qualquer referência ao título nas capas, sem paginação. O
primeiro até da data de edição prescindiu. Terceira
é um poema em três partes, ao qual o crítico Manuel de Freitas chamou, nas
páginas do Expresso, o «primeiro grande poema épico lusitano do século XXI». Ventos Borrascosos é um romance em verso
ao qual o autor chamou, citando Victor Hugo, a sua «obra de fantasma». Não me
parece haver nada de comparável na poesia portuguesa, pelo que, se não fosse
por mais, só por isto faria todo o sentido aqui citá-los.
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Por fim, publicado já este ano, o primeiro livro de uma nova editora: A Kodak faliu. Também o Dick, o cão da minha
infância (Barco Bêbado, Janeiro de 2020), de António Cabrita (n. 1959). O
facto de o ter prefaciado não me deve impedir de o mencionar, por duas razões
muito fortes: é um livro, enquanto objecto, muito bonito, que inaugura o
catálogo de uma editora nova neste ano de todas as desgraças; é um livro de
António Cabrita, escritor multímodo que ainda há não muito foi referido como o
maior poeta português vivo por um dos seus pares. Isto vale o que vale, quando
ainda estão vivos Eduarda Chiote (n. 1930) ou Alberto Pimenta (n. 1937), João
Miguel Fernandes Jorge (n. 1943), António Franco Alexandre (n. 1944) ou Manuel
Gusmão (n. 1945), etc… Demos as voltas que dermos, certo é que a obra de Cabrita
tenderá a impor-se, inevitavelmente, como uma das mais sui generis da nossa época — pelo humor, pela riqueza imaginativa,
pelo olhar arguto que lança sobre a realidade sem prescindir das imagens e das
metáforas como forma privilegiada de romper com o banal dos dias.
Considerações finais
Todas estas referências, podendo parecer
exaustivas neste contexto em que estamos, dão, na realidade, uma parca ideia da
pluralidade de vozes que matizam a poesia portuguesa da última década. Não
esperem que me deixe embalar por apenas uma delas, já que, mais do que preferir
qualquer um destes livros ou autores, eu desassossego-me mesmo é com os poemas
isoladamente, lidos como se não tivessem autor ou editora. Não falei aqui da
não (edições), por exemplo, a quem devo um dos melhores livros de poesia que li
este ano: Autobiografia do Vermelho,
da canadiana Anne Carson (n. 1950). Deixei de fora as traduções
propositadamente, para não facilitar o trabalho ao meu parceiro de colóquio que
há-de tratar desse assunto. Deixei de fora muitos e bons amigos com os quais
tanto tenho aprendido. Pesa-me que tenha de o fazer, por necessidade de síntese
e simplificação. O meu princípio base foi copiado do Adriano romanceado por
Marguerite Yourcenar: «O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em
especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmo-nos de cultivar as que
ele possui.»
Termino referindo-me a 3 poetas muito
precocemente desaparecidos nesta década que passou. Luís Falcão (n. 1975 – m.
2015) publicou um único livro em vida. Bruma
Luminosíssima (Artefacto, Maio de 2016), aparecido já postumamente, confirmou
o rigor de uma obra abruptamente interrompida. Patrícia Baltazar (n. 1977 – m.
2019) publicou mais. Uma doença malvada roubou-nos a sua presença física marcante,
mas tenho a certeza de que não nos roubará os seus poemas. Mais tarde ou mais cedo
hão-de ser reunidos num só volume. Rui Costa (n. 1972 – m. 2012) é um querido
amigo, o melhor de todos nós. Em 2017, a Assírio & Alvim publicou uma
antologia da sua poesia para que continuasse a esmurrar-nos: Mike Tyson Para Principiantes. Era dele,
agora é nosso, o poema com que termino:
NÃO
SÃO POEMAS
Não
são poemas o que eu escrevo.
São
casas onde os pássaros esperam.
Nas
suas janelas coincide o mundo.
Nos
seus esteios resvalam gigantes.
Algumas
vezes ódio.
Algumas
vezes amor.
Não
são mortalhas incondicionais do medo.
O
HÓSPEDE DA CASA NÃO
TEM
O DEVER DE SER FELIZ!
Não
são poemas que eu escrevo.
São
espelhos onde os rostos principiam.
4 comentários:
o Bar na Cave / Bartleby. foi giro enquanto durou.
Pois. Nunca cheguei a frequentar, mas lembrei-me quando estava a escrever o texto. Até pedi a um amigo que me recordasse o nome do bar, e depois escapou. Fica a nota. Obrigado.
caramba... obrigado!
Atrevo-me a comentar o balanço aqui apresentado. Gostei, embriaguei -me na leitura e guardei um conjunto de referências valiosas que desconhecia. Neste caso, poderei salientar que o que realmente sei é nada sobre a infinitude do conhecimento. Obrigada, pela partilha desta reflexão.
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