Não aprenderam nada.
Eu vinha do Porto, naqueles anos paragem obrigatória para o Fantas. Minha mãe telefonou preocupada, uma ponte havia caído em terras nortenhas. Era certo haver mortos. Descansei-a, estava com amigos na auto-estrada, de regresso. Seguiram-se semanas de directos. Um cheiro nauseabundo a invadir-nos através da imprensa. No rescaldo, contados os mortos, recuperados os corpos que foi possível recuperar, horas infindas sobre a abordagem mediática. O espectáculo da tragédia, da morte, da dor, o insuportável e fastiento espectáculo do desastre em discussão por todo o lado. Como devia ser dali em diante? Testes dobrados em quatro, teorias, e a gente numa desconfiança sustentada pela descrença.
Não aprenderam nada.
Os anos hão-de passar, séculos hão-de passar, e essa cambada que diz ser jornalista por ter uma caderneta qualquer com a qual nos garantem que são jornalistas não aprenderá nada, continuarão a actuar como o transeunte que interrompe a marcha para cheirar o acidente. Curiosidade mórbida? Nada disso. É mesmo uma absoluta ausência de compaixão, isto é, de algo que jamais entenderão ou perceberão ou serão capazes de compreender, por terem pés tão disformes que não se ajustam aos sapatos dos outros. Vale a audiência, o resto é jogo, vale a injecção de pânico para que a reacção mereça ser atendida. Medo gera medo, pânico gera pânico, destruição, ódio, audiência. É só quanto vale.
Quantos jornalistas haverá neste país que estejam verdadeiramente interessados em informar? Quantos deles mais interessados em comunicar do que comentar? Quando o jornalismo se assemelha, cada vez mais, ao imediatismo e à irreflexão e ao sensacionalismo das redes sociais, quando o jornalismo, refém das audiências, é cada vez mais uma rede social, que podemos nós esperar do quarto poder? Nada que valha a pena. É um jornalismo da desinformação, da doxa, alienado de qualquer interesse pela verdade, apenas espectáculo, o triste espectáculo do escândalo, da tragédia, do acidental, do mastiga e cospe, patilha elástica, dos alertas e das últimas horas e dos polígrafos e das legendas e notas de rodapé enodoadas por erros ortográficos e desinformação que, afinal, é apenas mais um pedido de desculpas pelo lapso.
Não aprenderam nada, continuam e continuarão a explorar até à exaustão o drama, a tragédia, o horror, aguardando que dentro de cada ser (cidadão?) não sobre um pingo de espanto e tudo seja vulgarizado e nenhuma compaixão exista. Até que a próxima notícia sobre a fome no mundo inspire tão-somente o desejo de encetar um pacote de pipocas.
Não aprenderam nada.
Erro nosso, supor que num abutre pode ainda restar margem para aprender alguma coisa.
4 comentários:
Excelente texto,do melhor que tenho lido sobre esta classe de merdas ou mercenários que fazem o trabalho sujo e alienador do grande capital.Depende do nosso livre arbítrio a sobrevivência destes meios. No meu caso pessoal boicoto quase totalmente jornais televisões e redes sociais...entre outras coisas.😉
Abraço e tudo de bom.
E para quem avaliar desta forma, o descrédito vai aumentando e deixamos de nos interessar pela imprensa escrita ou mudamos de canal porque se banalizaram os verdadeiros interesses da informação deixando de fora os valores humanos e se validaram apenas audiências e os caminhos que levam à sujeira que envolve o grande capital.
Um texto para refletir.
Valeu mesmo (vale sempre a pena, como diz o poeta)
Acho que devias ir trabalhar como jornalista um par de meses num qualquer órgão de comunicação social. Talvez aprendesses alguma coisa. Talvez a experiência te abrisse os olhos e passasses a ver as coisas como realmente são e não, apenas, como parecem a quem fala sem saber do que fala.
António, esse princípio de avaliação diz muito do que aqui se fala. Se fosse preciso trabalhar como primeiro ministro para avaliar um primeiro ministro, estávamos feitos. Só os primeiros ministros se podiam avaliar uns aos outros. Ninguém precisa de trabalhar como jornalista para avaliar o trabalho dos jornalistas. Mas se a sua regra é essa, fique descansado: já me chegaram as experiências que tive de redacção.
Enviar um comentário