IX —
Chamaram-me, e eu era, em tempos, a rapariga que temia a impostura da língua;
quando a escuridão na estrebaria é profunda, subo ao dorso do cavalo que me ofereceram para partir; a porta abre-se, e o quadro de luz está completamente restaurado através dos muros, das ruas, das casas; como se afastam de mim,
vejo-me rodeada por crianças que brincavam
connosco,
e por uma aparição de folhas que me escondem enquanto saio da cidade; as patas do cavalo que me sustém são verdadeiramente possantes, e nossa fragilidade é o silêncio; quando me dirigem a palavra, o que ainda não fizeram, sinto-me tomada pelo pânico da confusão das línguas.
Meu cavalo Maravilhoso é um quadrúpede verdadeiro a que dei este nome para o premunir da lenda que, fatalmente, irá tramar-se sobre ele; é o mesmo que Pégaso, que está no interior e no exterior dele, mas o meu segredo é defender-me atribuindo-me uma montada fabulosa.
Quando passarmos por uma toalha de água,
ou outra expressão de água,
pequena ou grande,
hei-de reflectir por que razão os meus pés, levantados do país pela massa volumosa do seu corpo, andam, arrastam o Brabante até ao mar de Alisubbo.
De facto, tenho a impressão que nadam, voam, falam. Colho dois frutos, um para Maravilhoso, outro para mim. Um passo em falso, uma maçã cai ao chão, e é esmagada por uma pata da minha montada. Outro dia resplende desta noite já amanhã; vemos ao longe os simulacros de um fogo distintamente gravados no horizonte e, sabendo que
nessa noite,
já encontrámos abrigo,
decidimos, de comum acordo,
pernoitar nele. Maravilhoso nutre-se de silêncio,
sua palha,
silenciosamente,
é o silêncio.
era uma vez um animal chamado escrita, que devíamos, obrigatoriamente, encontrar no caminho; dir-se-ia, em primeiro, a matriz de todos os animais; em segundo, a matriz de todos os seres existentes.
Constituído por sinais fugazes, tinha milhares de paisagens,
e uma só face,
nem viva, nem imortal. Não obstante, o seu encontro com o tempo apaziguara a velocidade aterradora do tempo,
esvaindo a arenosa substância da sua imagem.
Maria Gabriela Llansol, in Causa Amante, 1.ª edição em A Regra do Jogo, 1984, Relógio D'Água, 1996, pp. 159-160.

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