Passado um ano sobre o anúncio do novo coronavírus que fechou parte do mundo em casa, o patético optimismo que garantia ir ficar tudo bem foi substituído pelo desmotivante conformismo do vai ficar tudo na mesma. A proclamada reflexão que se impunha ficou por fazer, reiterada para planos acessórios pelos afazeres prioritários. Dizem-nos. Entretanto as vacinas controlarão a propagação do vírus no corpo humano, mas não cuidarão da saúde aos mercados. Pobres mercados. A já anunciada pandemia económica avizinha-se, adivinha-se, para não dizer propagandeia-se. Não é que a história se repita, mas por vezes parece. Aguardam-nos, portanto, bichas infindáveis de homens prostrados e mulheres desesperadas. O cenário é de catástrofe social: mais desemprego, mais fome, mais miséria, crises. Políticas, por certo, psicológicas, sem dúvida. Que nos poupem a guerras já não será mau.
A verdade, e sobre isto temos certezas, é
que a tal reflexão ficou por realizar. Há urgências maiores, há sempre
urgências maiores. Um artigo aqui, um comentador acolá, vozes mais ou menos
obscuras e isoladas, tentam sem glória alertar para os vícios originários do calvário que estamos a atravessar. É um problema de raiz, isto é, de desenraizamento, sugerem.
Acontece que nos afastámos da natureza, acrescentam. Pior, explorámo-la como
nunca antes na história do planeta ela foi explorada. A invasão de habitats
selvagens, pretextada pelas necessidades do novo mundo (o gasóleo das novas tecnologias não cai do céu), a devastação de
florestas, a emissão de gases poluentes associada ao modelo de sociedade que
nos vêm incutindo com promessas de conforto e de riqueza, o abandono do mundo
rural, a intensificação da agricultura intensiva, tudo tendo em vista respostas
eficazes, ou seja, rentáveis, quero dizer, lucrativas, ao consumismo
desenfreado, trouxeram-nos onde estamos. Podia ser de outra forma? Devia, mas
não há tempo para reflectir.
A pandemia dos mercados entupirá rapidamente
a urgência reflexiva, deixando a falar sozinhos aqueles para quem o estado de
emergência tinha uma configuração que não esta com que o poder dominante adestra povos. Quem
acompanha uma publicação como a revista Flauta de Luz sabe que muito antes
desta pandemia nos atazanar os dias já nessas páginas se discutiam as causas do
problema, a saber: a ganância da parte rica do mundo que promove o consumismo desenfreado
de artigos supérfluos produzidos em massa, a qual redunda no enriquecimento
insustentável de uma ínfima parte da população mundial à custa da servidão e da
escravidão da maioria. Por detrás dessa publicação encontramos o nome de Júlio
Henriques (n. 1948), tradutor, ficcionista — Deus Tem Caspa (Fenda, 1988),
Alucinar o Estrume (Antígona, 2017) —, poeta outrora sob pseudónimo de
Alice Corinde, agora em nome próprio neste Fora de Dentro (Barco Bêbado, 2020).
Os poemas deste livro, distribuídos por três
partes intituladas Aberturas, Ocorrências, Interstícios, elencam a seu modo e tanto quanto possível as premissas da tal discussão adiada. O primeiro conjunto,
chamemos-lhe assim, penetra o que sobra do mundo rural para captar os sons e as
vibrações da natureza: «Aqui as pedras falam / — mas só a quem conheça / a sua
língua lenta / e assombrosa» (p. 16). É esta auscultação que nos é proposta
como via de regresso a uma ancestralidade traída por uma ideia pretensiosa de progresso e submergida nos ruídos ensurdecedores
e cegantes da modernidade. Escutemos a natureza, tentemos entender quanto nos
seus sons fala o silêncio e procuremos compreender o que esse silêncio diz e
ensina acerca da cegueira a que nos sujeitámos: «Ouve-se crescer a erva nova, /
e as árvores, mirando-se / na sua lenta sombra que se ergue, / respiram como
animais / absorvidos» (p. 20).
Não se julgue, contudo, haver qualquer
espécie de bucolismo neste programa, ele é negado por uma vocação social que se
expressa, por vezes, violenta e furiosamente, outras vezes, recorrendo a uma
ironia profiláctica. A negação de uma visão idílica do mundo está na própria ridicularização
dos deslumbramentos que são mais parte do problema do que solução. Ultrapassado
o pórtico da sublimação daremos com diversas “ocorrências” altamente alarmantes:
o mundo rural transformou-se numa espécie de parque de diversões em que o
turismo é lei, a paisagem desfigurou-se, a degenerescência geográfica espelha a
degeneração humana, há um fedor elegíaco no ar que tomou conta do aparelho respiratório,
o homem pós-moderno sobrevive da supressão da sua humanidade, atolado no
espectáculo degradante da (des)informação. O poema Repetidamente fala-nos de violência
doméstica e de civilização, adoptando uma estranha noção de desenvolvimento. Será
isto o progresso?
Pelos interstícios da história estes poemas
impõem-se enquanto testemunho e acusação de uma corrupção que põe em causa a
própria ideia de poesia. O confronto entre o outrora e o agora é inevitável,
processa-se a partir de um entendimento da história que soçobra em imagens
ruinosas: as cinzas depois do fogo, a guerra, matéria em combustão, antecâmeras
do pó:
MANHÃ
no pesado elo
que o trabalho agencia,
hostilidade do dia
pronto para a batalha
de antemão perdida.
É
importante referir que este «pesado elo» com a actualidade é o pesadelo diariamente
exibido nos noticiários mas não só, pois estes apenas exibem o que convém a
quem lucra com a malha informativa. E o que não convém exibir é, desde logo, a
indolência alimentada pela banalização do mal, o cidadão que lambe os dedos oleados de gordura enquanto assiste em directo à contagem dos mortos. Imaginem o que seria um
sonâmbulo descobrir-se sonâmbulo. Este «ludismo do espectáculo» mediático é via
verde para a surdez e para a cegueira de que falávamos, subverte a relação do
homem consigo mesmo enquanto parte integrante e frágil de um mundo natural cada
vez mais afastado, desaparecido. Porque tudo se liga, o que aqui temos em xeque é a hierarquia de valores pela qual se regem as sociedades ditas desenvolvidas. Mate. Se a perspectiva apocalíptica pode parecer hiperbólica, a de uma acelerada tendência
para a automatização acrítica dos comportamentos não será. O resultado é uma
subvida humana, uma humanidade em estado contínuo de hipnose, uma vida que
talvez nem vida seja, pois não podemos chamar vida humana a uma vida que não
seja livre e para ser livre, como sabemos, é preciso ser crítico. Este é, pois, um
livro desconfortável, a natureza que nele ressuma vem acompanhada de um
desencanto e de uma desconfiança que interpela o leitor. Há que repensar a relação
do homem com a natureza, é essa a reflexão inadiável que ninguém parece disposto
a fazer por ser doloroso admitir que falhámos, temos de mudar de vida se
quisermos, de facto, viver:
DESAFORISMO
e queira ainda viajar de noite
sujeita-se seriamente
a ficar em terra.
é morrer
sem ter nascido.
Júlio Henriques, Fora de Dentro, capa e cortina de Miguel Carneiro, Barco Bêbado, Dezembro de 2020.

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