quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

UM POEMA DE JACQUES RÉDA

 


A MALA

I

Perdi a lembrança exacta das circunstâncias
em que, há trinta e cinco anos, encontrei o poeta Armand Guibert
desaparecido o ano passado no meio de um completo silêncio,
como se o esquecimento já o tivesse completamente recoberto.
Escreveu entre outras coisas uma Meditação sobre um selo de correio,
impossível de encontrar, que talvez me oferecesse se tivéssemos
estabelecido relações amistosas e duráveis nessa época,
mas foi um encontro único apesar das nossas boas intenções.
Deu-se julgo eu num encontro de homens de letras
onde, nesse tempo, acontecia que o curso das coisas me fazia encalhar.
Falava com alguém de um livrinho que acabava de aparecer.
Um personagem nervoso surgiu, agarra-me, profere: «Você gosta de Psoa!»
Era Guibert. Esse livro, ele próprio acabava de o traduzir: Bureau
de tabac et autres poèmes, um magro volume que fui obrigado
rapidamente a encadernar (continuo a tê-lo) de tecido cinzento
azulado sólido
visto que caía em pedaços à força de releituras.
Cada página abria-me um novo espaço de poesia,
se bem que eu já tivesse seguido não poucos outros exploradores.
Sou disso devedor a Guibert que, com uma ardente modéstia,
não foi apenas o intérprete nem o principal inventor,
nem mesmo um assistente fiel, mas também durante toda a sua vida,
ao ponto de se apagar (poucos poetas sonham sinceramente com um tal sucesso),
o único heterónimo francês de
                                                Psoa! — como ele pronunciava.

II

E os poetas fazem melhor, em suma, do que traduzir
Cada um na sua língua, as palavras que ouvimos rumorejar
Sob as espessuras do silêncio, com a voz das águas
Ou no idioma obscuro que se fala no fundo dos nossos cérebros?
Assim fez Pessoa, mas como inspirado poliglota
Encontrando em si tudo o que duvida, ironiza, soluça,
Serena, assusta, canta e celebra ou amaldiçoa;
Governando a sua metamorfose, a menos que aturdido
Quando o possuía a imprevisível e súbita exigência
De um estrangeiro que ele alojava, não tivesse a inteligência
Tão súbita da sua língua e de todo o universo
Íntimo que ela abria com uma avalancha de versos.
Contudo, devo confessá-lo, algo me perturba
Nesse poeta cujos tons de aspecto heterogéneo
Respondiam aos impulsos diversos da sua veracidade:
É de facto o número daqueles que o perseguiram
Com glosas onde a poesia inocente se afunda,
E que, sem contenção, pilharam a velha mala
Na qual ele tinha, diz-se, metido os seus manuscritos. 
Mas esse ardor é legítimo, e é o meu azedume
Que está mal, sem dúvida, ao observar que hoje se aclama
Um nome que se sussurrava outrora como um sésamo.
De resto que sabemos nós do destino real de Pessoa?
Aquele que foi Reis, Caeiro, Campos, e jogou
Sem freio com a sua mobilidade poética e mental,
Não teria podido (a certeza pelo contrário instala-se),
Protegido pelo sentido irónico do seu verdadeiro nome,
Escapar-se a fim de prosseguir na clandestinidade, se não
O que nós chamamos a sua obra, uma demanda infinita
Desse eu sempre outro cuja amizade se engenha
Em dispersar-nos? E quem sabe se o que se ouve
Falar no mais secreto de si não é um persistente
Murmúrio do poeta inapreensível que se suspeita
Pretender reviver em cada um para não ser mais ninguém
Sem nunca conseguir desaparecer? Por vezes
Na rua, no meio da multidão cinzenta, vejo
Um homem um pouco mais cinzento: a sua indecisa silhueta
De gabardina e chapéu flutua, e verdadeiramente desejo
Enganar-me, mas é ele, frágil e perplexo imortal,
Que se detém mais à frente à porta de um hotel,
Hesita um momento, depois volta a partir, em última análise
Lembrando-se de que perdeu a sombra e a mala.


Jacques Réda, de Nouveau livre des reconnaissances, 1992, trad. Nuno Júdice, in Sud-Express. Poesia Francesa de Hoje, Relógio D'Água, 1993, pp. 218-220. 

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