quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

O MORTO

 


O MORTO
ODE DIDÁCTICA

Devo velar os meus mortos.
Vigiá-los, com doçura, mas vigiá-los.
Estar atento nas franjas do silêncio.
Alguma coisa deve acontecer
na espera. Alguma coisa, de algum modo
virá aclarar-se. O silêncio decanta,
evidencia o gesto menor, a amargura sem pausa
o ganga das lágrimas... O silêncio é na verdade puro
quando lhe damos um fundo irremediável.

Nascemos nos limites do reino da morte
com suas pompas, sua hierarquia, seus hábitos.
Deslizamos sem cessar nas entranhas desejáveis
e os predestinados, esses sim, vão, voam, adiantam-se
são belíssimos, têm o sangue dourado,
e, na verdade, são já os nossos mortos.

Um morto esquecido é tantíssimo perigoso.
Cuidado. Eles foram-se
para se fazer mais lembrados.
Se os recusamos aninham-se, somem-se
e, vingativamente, viram a vermina do futuro.

Os meus mortos são severos. Exigem
toda uma côrte de pequenos ritos:
um beijo ao entrar na sala
um beijo ao sair da sala...
um dar contas permanente, fui à baixa
vi o nuno, cheguei tarde, desculpa, ando tonto, um beijo
ao entrar do quarto, um beijo ao sair do quarto...
O morto está em todo o lado, exige
agacha-se em tudo, e o fétiche aquieta-o.
O morto tem o pavor de já não servir.
Há que dizer-lhe que não, que é útil, e prová-lo
um beijo ao entrar da noite, um beijo ao entrar do dia...

Detesto parecer didáctico, mas eu conheço-os.
No longo hábito, na atenção, na espreita,
na muita dor, no silêncio extreme
alevantei o mapa dos reinos do visgo
e sei hoje coisas lineares e atormentadas
que me enchem de um permanente respeito, em que o calar
é uma linguagem sem lugar à atitude
e o sorrir de uma certa maneira, a única chave.

Um morto verdadeiro (se o morto fosse só o cadáver...)
um morto, dizia, reconhece-se com dificuldade,
mas há siglas únicas, coisas
que sós, são nada, mas juntas atingem com dureza o osso frontal
brocam, perfuram a nossa compreensão
e, como um vírus bom, destroem tudo
o que não é essencial.

E depois, o morto é um gesto e sem fala.
Não anda, sorri, levita, desloca-se nos hálitos,
nunca lhe vemos as costas, sépia e opaco
como uma velha fotografia.
É um olho de sombra pesada, um megacubo de silêncio
com a minúscula varejeira do sangue permanente
no centro geométrico da atenção.

Como o morto nunca nos diz nada
vem daí o extremo penoso da sua presença.

Com eles nem mistificar nem mitificar.
Despertamos-lhes o ódio ou o desprezo.
Colam-se-nos, com o suor, à ilharga
e um corujão sagrado de penas de seda, aloja-se
perpétuamente em nossa nuca.
O pio que nunca chega é castigo.

Outro sinal é o cheiro.
Particularmente doce, especialmente triste.
Quando fareja o morto, o nosso nariz
vira a pera sensível e sumarenta
comida no degrau da infância, ao poente.

É simptomático que o cheiro da morte
encerre tanta vida.

(...)


João Pedro Grabato Dias, in O Morto. Ode Didáctica, textos Caliban, edição do autor, Lourenço Marques, Setembro de 1971, pp. 11-15.

5 comentários:

Gonçalo Fernandes disse...

O maior poeta português sem obra em circulação. "Respeito o teu exagero", foi-me dito.

hmbf disse...

Não é exagero algum. Em circulação ou parado, é um dos que melhor tratou a poesia em língua portuguesa. Sem dúvida. Hei-de postar mais deve aqui nos próximos tempos.

jpt disse...

Fica-se à espera de mais postais. Este "Morto" dei-o a quem o merecia mais do que eu. É mesmo incrível (questão de difíceis direitos, porventura) que António Quadros esteja escondido.

Gonçalo Fernandes disse...

Só não "exagerei" mais porque teria aqui forças especiais a descer de helicópteros no minuto seguinte.
Desde o início de 2015 que venho contactando esporadicamente com o filho de António Quadros, por mail, primeiro para comprar três livros que me faltavam, depois sugerindo a reedição das obras e, mais tarde, disponibilizando-me para a transcrição das mesmas (seria necessário, por exemplo, uniformizar os caracteres das odes didácticas, impressas integralmente em maiúsculas, como fez António Cabrita no catálogo de pintura), tendo inclusivamente averiguado a receptividade junto de editores. A resposta mais concreta que obtive por parte do filho foi que "as reedições já estarão a ser equacionadas" (negritos meus). Já passaram uns anitos... Ou é falta de vagar ou de pachorra ou puro desinteresse, e não é da parte das editoras.
Se continuar a não acontecer nada, aproveito as férias grandes para transcrever ou fotografar tudo e disponibilizar no scribd ou coisa que o valha.

hmbf disse...

É uma opção. A obra merece outra divulgação, sem dúvida. Hoje vou deixar mais umas coisas. Saúde.