domingo, 21 de fevereiro de 2021

UM POEMA DE LILIANA S. RIBEIRO

Teatro anatómico

Passou com uma flor entre os dentes
uma senhora de pescoço alto, risco negro no seu vestido vermelho
(ou seria branco).
Passou como num filme mudo
acenando de lá aos curiosos de cá,
atravessou o arco, a praça, os pés ligeiros no jardim botânico,
dela era tudo.
Rezou na igreja de Santo António de Pádua
(adoentou-se em Lisboa)
colou a fotografia de um rapace sem que ninguém a visse
(fez voto de promessa)
(três ave-marias, um pai-nosso)
deixou ao santo o seu louvor.
Alçou-se da Ponte della Torricelle
e ao meio dia saiu do campo de visão.
Foi recolhida sem vestido para análise póstuma.
A sua boca, desmedida e infantil, impossível de dizer
mantinha a verde flor em troca de uma cura.

Liliana S. Ribeiro, in O Todo Pela Parte, Arranha-céus, 2014, p. 20.

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