segunda-feira, 8 de março de 2021

UMA CAPA

 


Esta capa levanta várias questões, sendo a principal delas uma discriminação aparente entre portugueses medalhados e portugueses sem pódio. É uma questão pertinente, embora fundamentada numa leitura enviesada da intenção que subjaz à mensagem trazida para primeira página. Importa, antes de mais, ter em consideração o público a que se dirige o jornal desportivo em causa. É um jornal de massas, das claques e dos adeptos de desporto (maioritariamente de futebol, onde, como é de todos sabido, pululam grupelhos com ligações à extrema direita). Aquando do caso Marega foram várias as capas que o Record fez para assinalar o problema em causa. Marega 5/ Racismo 0 foi o título com mais impacto. O problema agora é mais complexo, surge na sequência de uma campanha à presidência da república portuguesa que optou por recuperar o discurso da União Nacional, que nos idos de 1930 dividia a população portuguesa entre os de boa vontade, aqueles que estavam com a ditadura, e os outros, uns de primeira, outros de segunda, uns de bem, outros de mal. Teria esta capa o mesmo impacto junto do público a que se dirige se em vez de três medalhados trouxesse rostos anónimos? Não. Compreendo o romantismo de quem preferia uma capa onde surgisse representada a multiculturalidade portuguesa, como, de resto, são todas as capas com a selecção nacional de futebol, sem se proceder a esta exaltação do mérito e do sucesso como legitimação de uma identidade. Sucede que aqui estão em causa três afro-descendentes, um dos quais de origem cubana, outra nascida camaronesa, nacionalidades que nem sequer fazem parte dos PALOP, que se esmifraram para fazer soar A Portuguesa lá longe, trazendo mais três medalhas de ouro para o atletismo nacional. Faz sentido que os celebremos, mostrando a quem não quer ver o ridículo da divisão entre portugueses de primeira e portugueses de segunda, entre portugueses de bem e os outros, os ciganos, os imigrantes, os que vêm para cá explorar-nos, não querem trabalhar e não pagam impostos, etc. Os da capa estão em representação de todos os outros, há neles uma carga simbólica poderosa que não pode ser ignorada. Essa carga simbólica tem aqui a utilidade de combater junto das massas preconceitos raciais, mostrando com clareza quão ridículos são os estereótipos e as generalizações. O Record aproveitou a oportunidade para desmontar tais preconceitos, não pela excepcionalidade dos medalhados, mas pela sua representatividade. Quanto a mim, está de parabéns por tê-lo feito.

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