segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

DIA DOS NAMORADOS

 
   As pessoas preferem uma mentira consoladora a uma verdade inquietante. É axioma que tive oportunidade de verificar diariamente quando era livreiro. Estou consciente das excepções (que confirmam a regra), generalizo para simplificar o discurso. O Big Brother Famosos, para não complicar, serve de exemplo prático. Considerar famosos aqueles concorrentes é exactamente o mesmo que servir gato num restaurante que anuncia lebre. O público aceita a mentira, não se queixa da trapaça, brinca com o tema, porque o que lhe interessa é satisfazer o desejo voyeurista, independentemente de o fazer com gato ou com lebre. A forma é praticamente igual, o conteúdo assemelha-se.
   A ausência de gravidade é o maior problema, diria mesmo a causa de todos os verdadeiros problemas com que nos confrontamos actualmente. Por não haver gravidade, os corpos flutuam e as mentes elevam-se como balões cheios de hidrogénio. Um génio muito burro. Pela elevação são (en)levadas, perdendo pé ao chão. Quem anda nas nuvens, ou se queima ou se molha — conforme o clima. Sóbrio é que não fica. Por não haver gravidade, tudo se torna giro, engraçadinho, porreiro. O tolo atura o néscio, o pacóvio exalta o grunho, o burgesso venera o espertalhão, a hipocrisia enforma e comanda a vida. Desde que escapemos a ralações individuais, para quê preocupações colectivas?
   A ausência de gravidade alinda o feio, revê a história, fomenta a nostalgia de que se alimentam emoções e sentimentos delico-doces. Tudo se torna suportável, até aquilo que consideraríamos insuportável não fosse o caso de se passar com os outros. Com as chatices dos outros posso eu bem, com os problemas dos outros posso eu bem. Este reinado do individualismo tem um aliado de peso nos modelos de vida adoptados pelas sociedades capitalistas, chama-se sociedade do espectáculo. Chegamos mais uma vez ao BBF, que fui ontem levado a ver cheio de nós no estômago. Discutimos o assunto. Mais uma vez, o meu esforço (inglório?) consistiu em tentar demonstrar a diferença entre a legitimidade e a legitimação de um comportamento.
   É das verdades dolorosas que as pessoas não gostam de ouvir: ao vermos este esterco, ao perdermos tempo das nossas vidas a dar audiência a este triste espectáculo, estamos a legitimá-lo, tal como o programa legitima comportamentos abusivos de manipuladores natos, tal como o programa legitima uma linguagem violenta e gestos socialmente reprováveis. Não, os concorrentes não estão na intimidade do seu direito à privacidade, assinaram um contracto que permite tornar-lhes públicos até os peidos. Não interessa, pois, discutir se é ou não violência doméstica o que um concorrente faz com autorização do outro, interessa perceber que, ao exibir tal comportamento, o programa e quem o vê estão a legitimá-lo, porventura para desconforto, senão mesmo tortura, de milhares de vítimas de violência doméstica que, na solidão das suas casas, serão levadas a pensar que, afinal, não são assim tão vítimas, porque a ausência de gravidade alinda a fealdade dos comportamentos. Um consolo.

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