sábado, 12 de fevereiro de 2022

REVISTA TRÊS TRÊS, N.º 9

 


Revista Três Três
Edição de Fausto Vicente, Gonçalo Fonseca e Pedro Xavier Mendonça
N.º 9, Dezembro de 2021


NA CAMA COM OFÉLIA

(esquisso de uma peça)

   Sobre Ofélia sabemos apenas que é mulher. De início temos um nome. Mas tal como um corpo carrega suas cicatrizes, também um nome é feito de feridas, nódoas, derrames. Dentro dos nomes ressoam histórias, mitos e lendas, a carne poderosa de um pensamento capaz de animar o que não tem vida. Os nomes sentem, pesam. Ao contrário das coisas, que são essencialmente efémeras, os nomes perduram no tempo, atravessam-no, acrescentando-se a si mesmos com as personagens que lhes dão rosto, matéria de que se apropriam para se fazerem físicos.

   Dizemos de Ofélia que é nome próprio, mas próprio de quê? Pode ser a noiva do Príncipe Hamlet, porventura inspirada numa tal Katherine que morreu afogada no Rio Avon. A Shakespeare convinha o romantismo de um desgosto amoroso, acrescentado do mais trágico dos gestos humanos: o suicídio. Talvez Katherine tenha apenas escorregado no decorrer de um passeio inadvertido, resvalando para o leito da morte que é de onde brota a incerteza que está sempre na raiz do mito, da lenda, da história. Se o acidente vitimou a mulher física, de algum modo deu vida à personagem nessa mulher inspirada. O corpo físico de Katherine morreu, mas a Ofélia que dele surdiu, como espírito que se liberta da matéria, sobrevive, resiste ao tempo e não consta que em vias de extinção.

   Da Ofélia desenhada por Shakespeare surgiu a mais famosa pintura de Sir John Everett Millais. Rodeada de flores, arbustos, ervas, a mulher jaz morta dentro de água. O retrato meticuloso do rosto é inequívoco, a posição das mãos é a de quem acolhe o destino trágico do êxtase amoroso. Nela a loucura, o delírio, o amor e a morte encontram síntese no suicídio. Mas uma outra história se esconde por detrás da pintura de Millais. A escritora Hélia Correia contou-a no romance “Adoecer”, a história da modelo que apanhou uma pneumonia depois de horas a pousar dentro de uma banheira. Elizabeth Siddal, ou simplesmente Lizzie, é a Ofélia de Millais, mas é também a amante de Dante Gabriel Rossetti, nome maior da Irmandade Pré-Rafaelita que tanto escândalo causou na era vitoriana.

   Lizzie é a Ofélia de Millais, que, por sua vez, é a de Shakespeare, porventura inspirada em Katherine. Entre Katherine e Lizzie existe uma ligação histórica que não devemos descurar, pois entre ambas a doença e o suicídio são como que ressonâncias de amores penosos, paixões emaranhadas na teia do desespero. Neste sentido, Ofélia faz parte de uma longa linhagem de mulheres a quem seus amados não valeram e o amor asfixiou. Mulheres condenadas à morte pelo amor. Não foi assim com Eurídice, ninfa de Orfeu? Não foi assim com a nossa Inês, morta pelo amor de Pedro?

   No nome de Ofélia corre o gene desta linhagem, sendo talvez outra a dimensão do seu desespero. A nossa Ofélia está numa cama. Estará viva? Estará doente? Estará morta? Será que sonha? De certo modo, jaz no leito de uma existência incerta. A cama não é como o rio onde se afogaram Katherine e Lizzie, por assim dizer. A cama é onde a confissão e o amor se afirmam, é lugar de encontro com o outro e de si consigo mesmo, é onde a paixão tanto desperta como adormece. A cama será, no nosso caso, um lugar de espera e de indefinição, espera desesperada de um amor esquivo, fugidio, inconstante e volátil como a matéria dos sonhos.

   «Eu quero brincar às escondidas contigo», diz-se a certa altura numa peça de Sarah Kane. E o mesmo poderia dizer o amado da nossa Ofélia, escondendo-se no íntimo de nomes que não são o seu. Ofélia é a bebé, o amorzinho, mas o seu amante é uma pessoa com inúmeros nomes. Ofélia está numa cama, num quarto, rodeada de nomes que têm tudo para lhe oferecer menos o que ela mais deseja: corpo, carne, sangue, paixão. Os seus interlocutores são apenas nomes, personas imateriais num tempo e num espaço onde real e virtual se misturam e se confundem. Não será assim também neste tempo em que capturados pelas redes do virtual contemplamos diariamente a morte lenta de um saber estar com o outro, na presença física do outro, desprotegidos pela proximidade do corpo a corpo?

   Ora, sobre o drama pessoano disse José Gil que foi Ofélia quem primeiro e melhor o compreendeu. Leitora de um mundo virtual em plano real, teve de aprender a lidar com uma multidão de amantes no corpo de um homem só. «Eu preferia a desilusão a viver iludida», diz ela ao grande ilusionista. «O jogo da sinceridade das palavras» coloca o putativo amante face a uma nova realidade, que já não é apenas a do «fingimento poético com verdade». Os planos da vida e da escrita interseccionam-se, se assim é correcto afirmá-lo, sendo certo que para um deles sobreviver, o da escrita, parece que o outro, o da vida, teve de ser sacrificado. A cama ter-se-á mantido agonizantemente monocórdica, sendo por vezes difícil destrinçar o que nela houve de diálogo ou monólogo. Ofélia está numa cama, está só. Ainda que à sua volta reverberem nomes, não deixa de estar só. Só na companhia de nomes.

   A leitura que José Gil faz desta complexa relação, num texto intitulado “A máquina de amor de Ofélia-Fernando Pessoa”, é deveras estimulante: «desde o princípio da relação se estabelece um duplo desfasamento: entre o plano de escrita de Ofélia e o de Fernando Pessoa; entre o plano da vida de um e o do outro. Mas desfasamento que implica simetria, já que para Ofélia o plano da escrita que garante a sinceridade das emoções equivale ao plano da vida em Pessoa. Simetria incompleta, no entanto, pois o plano da escrita em Pessoa não corresponde a nada em Ofélia». A escassez de correspondência por parte de Pessoa, em comparação a Ofélia, e as faltas a encontros marcados, que levarão a amante a uma situação de desespero, permitem-nos julgar que para o Poeta esta viagem foi a que esteve mais próxima de o trazer à banalidade da vida, sem que alguma vez tenha saído de onde sempre esteve enclausurado: o «Eu nulo substancial». Isto apesar dos «beijinhos» e dos «chi-corações».

   Penso em Ofélia pretendendo torná-la física, tentando imaginar as dores que a ausência provocou no seu corpo, a ferida aberta pelo desespero de quem se sente só no meio de uma multidão. O seu destino não terá sido trágico como conviria a uma personagem de Shakespeare, mas olho para a correspondência trocada entre 1919 e 1935 convencido de que, a certa altura, também ela teve de se suicidar nas águas de um rio cujas margens são a memória e o esquecimento. «Já está a fazer óózinho?! Já? Então eu vou falar muito devagarinho que é para o amor não acordar: (…) Qué vê o meu lindo, já tenho saudades».

 

Henrique Manuel Bento Fialho
Caldas da Rainha , 14 de Novembro de 2019

pp. 36-37.

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