NA CAMA COM OFÉLIA
(esquisso de uma peça)
Sobre Ofélia sabemos apenas que é mulher. De
início temos um nome. Mas tal como um corpo carrega suas cicatrizes, também um
nome é feito de feridas, nódoas, derrames. Dentro dos nomes ressoam histórias,
mitos e lendas, a carne poderosa de um pensamento capaz de animar o que não tem
vida. Os nomes sentem, pesam. Ao contrário das coisas, que são essencialmente
efémeras, os nomes perduram no tempo, atravessam-no, acrescentando-se a si
mesmos com as personagens que lhes dão rosto, matéria de que se apropriam para
se fazerem físicos.
Dizemos de Ofélia que é nome próprio, mas
próprio de quê? Pode ser a noiva do Príncipe Hamlet, porventura inspirada numa
tal Katherine que morreu afogada no Rio Avon. A Shakespeare convinha o
romantismo de um desgosto amoroso, acrescentado do mais trágico dos gestos
humanos: o suicídio. Talvez Katherine tenha apenas escorregado no decorrer de
um passeio inadvertido, resvalando para o leito da morte que é de onde brota a
incerteza que está sempre na raiz do mito, da lenda, da história. Se o acidente
vitimou a mulher física, de algum modo deu vida à personagem nessa mulher
inspirada. O corpo físico de Katherine morreu, mas a Ofélia que dele surdiu,
como espírito que se liberta da matéria, sobrevive, resiste ao tempo e não
consta que em vias de extinção.
Da Ofélia desenhada por Shakespeare surgiu a
mais famosa pintura de Sir John Everett Millais. Rodeada de flores, arbustos,
ervas, a mulher jaz morta dentro de água. O retrato meticuloso do rosto é
inequívoco, a posição das mãos é a de quem acolhe o destino trágico do êxtase
amoroso. Nela a loucura, o delírio, o amor e a morte encontram síntese no
suicídio. Mas uma outra história se esconde por detrás da pintura de Millais. A
escritora Hélia Correia contou-a no romance “Adoecer”, a história da modelo que
apanhou uma pneumonia depois de horas a pousar dentro de uma banheira.
Elizabeth Siddal, ou simplesmente Lizzie, é a Ofélia de Millais, mas é também a
amante de Dante Gabriel Rossetti, nome maior da Irmandade Pré-Rafaelita que
tanto escândalo causou na era vitoriana.
Lizzie é a Ofélia de Millais, que, por sua
vez, é a de Shakespeare, porventura inspirada em Katherine. Entre Katherine e
Lizzie existe uma ligação histórica que não devemos descurar, pois entre ambas
a doença e o suicídio são como que ressonâncias de amores penosos, paixões
emaranhadas na teia do desespero. Neste sentido, Ofélia faz parte de uma longa
linhagem de mulheres a quem seus amados não valeram e o amor asfixiou. Mulheres
condenadas à morte pelo amor. Não foi assim com Eurídice, ninfa de Orfeu? Não
foi assim com a nossa Inês, morta pelo amor de Pedro?
No nome de Ofélia corre o gene desta
linhagem, sendo talvez outra a dimensão do seu desespero. A nossa Ofélia está
numa cama. Estará viva? Estará doente? Estará morta? Será que sonha? De certo
modo, jaz no leito de uma existência incerta. A cama não é como o rio onde se
afogaram Katherine e Lizzie, por assim dizer. A cama é onde a confissão e o
amor se afirmam, é lugar de encontro com o outro e de si consigo mesmo, é onde
a paixão tanto desperta como adormece. A cama será, no nosso caso, um lugar de
espera e de indefinição, espera desesperada de um amor esquivo, fugidio, inconstante
e volátil como a matéria dos sonhos.
«Eu quero brincar às escondidas contigo»,
diz-se a certa altura numa peça de Sarah Kane. E o mesmo poderia dizer o amado
da nossa Ofélia, escondendo-se no íntimo de nomes que não são o seu. Ofélia é a
bebé, o amorzinho, mas o seu amante é uma pessoa com inúmeros nomes. Ofélia
está numa cama, num quarto, rodeada de nomes que têm tudo para lhe oferecer
menos o que ela mais deseja: corpo, carne, sangue, paixão. Os seus
interlocutores são apenas nomes, personas imateriais num tempo e num espaço
onde real e virtual se misturam e se confundem. Não será assim também neste
tempo em que capturados pelas redes do virtual contemplamos diariamente a morte
lenta de um saber estar com o outro, na presença física do outro, desprotegidos
pela proximidade do corpo a corpo?
Ora, sobre o drama pessoano disse José Gil
que foi Ofélia quem primeiro e melhor o compreendeu. Leitora de um mundo
virtual em plano real, teve de aprender a lidar com uma multidão de amantes no
corpo de um homem só. «Eu preferia a desilusão a viver iludida», diz ela
ao grande ilusionista. «O jogo da sinceridade das palavras» coloca o
putativo amante face a uma nova realidade, que já não é apenas a
do «fingimento poético com verdade». Os planos da vida e da escrita
interseccionam-se, se assim é correcto afirmá-lo, sendo certo que para um deles
sobreviver, o da escrita, parece que o outro, o da vida, teve de ser
sacrificado. A cama ter-se-á mantido agonizantemente monocórdica, sendo por
vezes difícil destrinçar o que nela houve de diálogo ou monólogo. Ofélia está
numa cama, está só. Ainda que à sua volta reverberem nomes, não deixa de estar
só. Só na companhia de nomes.
A leitura que José Gil faz desta complexa
relação, num texto intitulado “A máquina de amor de Ofélia-Fernando
Pessoa”, é deveras estimulante: «desde o princípio da relação se
estabelece um duplo desfasamento: entre o plano de escrita de Ofélia e o de
Fernando Pessoa; entre o plano da vida de um e o do outro. Mas desfasamento que
implica simetria, já que para Ofélia o plano da escrita que garante a
sinceridade das emoções equivale ao plano da vida em Pessoa. Simetria
incompleta, no entanto, pois o plano da escrita em Pessoa não corresponde a
nada em Ofélia». A escassez de correspondência por parte de Pessoa, em
comparação a Ofélia, e as faltas a encontros marcados, que levarão a amante a
uma situação de desespero, permitem-nos julgar que para o Poeta esta viagem foi
a que esteve mais próxima de o trazer à banalidade da vida, sem que alguma vez
tenha saído de onde sempre esteve enclausurado: o «Eu nulo substancial». Isto
apesar dos «beijinhos» e dos «chi-corações».
Penso em Ofélia pretendendo torná-la física,
tentando imaginar as dores que a ausência provocou no seu corpo, a ferida
aberta pelo desespero de quem se sente só no meio de uma multidão. O seu
destino não terá sido trágico como conviria a uma personagem de Shakespeare,
mas olho para a correspondência trocada entre 1919 e 1935 convencido de que, a
certa altura, também ela teve de se suicidar nas águas de um rio cujas margens são
a memória e o esquecimento. «Já está a fazer óózinho?! Já? Então eu vou falar
muito devagarinho que é para o amor não acordar: (…) Qué vê o meu lindo, já
tenho saudades».
Caldas da Rainha , 14 de Novembro de 2019
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