Cá estamos mais uma vez, minhas filhas,
enredados nos limites de humor. Não há nada como uma chapada num humorista para
nos desviar as atenções da guerra na Ucrânia, da fome no Iémen e de outros
assuntos menores. Estando vós familiarizadas com o tema, ou não tivesse sido a “Antologia
do Humor Negro” o primeiro destes 100 livros que vos deixo, permiti-me que vos justifique
esta retoma de problemática tão batida e debatida. No decorrer da cerimónia dos
Óscares de 2022, como sabeis de interesse nulo para quem vos escreve, um conhecido
humorista foi esbofeteado por um conhecido actor na sequência de uma piada. Há
quem diga que a piada era sobre a alopecia da mulher do ofendido, embora a vítima
de agressão tenha esclarecido de que a piada era sobre “G. I. Jane” (uma xaropada
de 1997 deveras desaconselhável). Vá lá alguém saber. Certo é que, entretanto,
já se recuperou o próprio ofendido a fazer piadas, no passado, sobre a mesma
doença, sendo igualmente curioso que haja rido da piada que o ofendeu.
Algumas ofensas só são perceptíveis a posteriori. Conheci um badocha que passava o tempo a chamar badocha aos outros e ficava muito ofendido quando lhe chamavam badocha a ele. Acontece muito, até com os mais magros. Mas não é do badocha que vos quero falar, é de um outro indivíduo que também conheci, um indivíduo cujo caso particular me remeteu para o livro que hoje vos ofereço. Não direi o seu nome por ser escusado dizê-lo, resumirei antes a sua história respeitando os princípios básicos de uma narrativa:
1) empatia: determinado
sujeito amava muito a mulher com quem casou, gabando-lhe os vícios como se
fossem virtudes — a ponto de parecer que nela não havia defeitos;
2) conflito: um dia esse sujeito descobriu que a mulher o traía;
3) acção: o sujeito separou-se da mulher;
4) transformação: depois de se separar da mulher, o sujeito só via defeitos e vícios na ex-mulher, ela passara de santa a energúmena;
5) conclusão: o sujeito passou a desconfiar de todas as mulheres.
Acontece aos melhores serem traídos, mas só
os piores generalizam a todos os membros de um conjunto as características
particulares de um dos seus elementos. Podia ser esta a moral da história,
houvesse moral nestas histórias. A vida, como sabeis, é uma paleta infindável de
cores, ainda que muita gente opte por viver só uma delas. Muitas pessoas nem
sequer se apercebem que entre duas cores tão distintas como o preto e o branco
se intrometem imensos cinzentos, tornando quase inevitável que a existência não
passe de um crepúsculo, um limbo, onde somos impelidos a tomar opções e a
escolher caminhos delimitados ora pela vontade, ora pelas circunstâncias.
Charles Fourier (1772-1837), de quem pretendo falar-vos, foi um notável utopista com uma percepção arguta da espécie humana. Isso mesmo tê-lo-á levado a dizer, a propósito do seu humorístico “Quadro Analítico da Corneação”, que «O que acima de tudo os Civilizados temem é a verdade, e a minha escala dos adultérios tem contra si o defeito de ser verídica.» O adultério, eis o assunto deste pequeno livro já merecedor de, pelo menos, duas traduções distintas para língua portuguesa (uma de Aníbal Fernandes, para a &etc, outra de Helder Guégués, para a Cavalo de Ferro). Porque vos trago eu semelhante livro nas actuais circunstâncias? Ora, haverá tema mais difícil de encarar em termos humorísticos do que a traição?
Colocai-vos no lugar do traído, que em Fourier, infelizmente, é quase invariavelmente do género masculino. Limitações que o tempo se encarregou de corrigir. Traído no contexto doméstico ou político, traído no trabalho ou na amizade, é sentimento, o da traição, acerca do qual difícil se torna o riso. E no entanto Luigi Pirandello (1867-1936) desmentir-nos-á. Lá iremos. Por ora pergunto-me em que tipo de cornudo encaixa o perfil do indivíduo acima descrito? Nos mais de 70 sugeridos por Fourier não aparece nenhum que se lhe aproxime, nem o humilhado ou perplexo ou ensimesmado, nem o misantropo, sendo talvez plausível que a determinado momento se aproxime do cornudo corneta:
Cornudo corneta é o que
espalha ao público as suas lacrimosas confidências, precisando: «Apanhei-os com
a boca na botija, meus senhores!» A tais palavras é costume responderem-lhe que
talvez não passe tudo de um gracejo e não devemos acreditar tão facilmente no
mal, o que não basta para evitar os prejuízos pessoais de uma divulgação tão
farta e feita a quem quis ouvi-la. De boa vontade este cornudo usaria corneta
para reunir mais auditores e mobilizá-los contra a injustiça da sua mulher.
Que posso eu dizer-vos senão que melhor teria sido adoptar o cornudo os conselhos do auditório, isto é, ver tudo como um
gracejo sem acreditar tão facilmente no mal? Se algum dia vos sentirdes
traídas, fazei com a dor o que dos ofendidos se espera ser feito com piadas de
mau gosto: virai-lhe as costas, continuai em frente. O tempo que nos resta não
merece ser desperdiçado com o mal que nos fazem. Muito menos fazendo nós
próprios o mal.
Algumas ofensas só são perceptíveis a posteriori. Conheci um badocha que passava o tempo a chamar badocha aos outros e ficava muito ofendido quando lhe chamavam badocha a ele. Acontece muito, até com os mais magros. Mas não é do badocha que vos quero falar, é de um outro indivíduo que também conheci, um indivíduo cujo caso particular me remeteu para o livro que hoje vos ofereço. Não direi o seu nome por ser escusado dizê-lo, resumirei antes a sua história respeitando os princípios básicos de uma narrativa:
2) conflito: um dia esse sujeito descobriu que a mulher o traía;
3) acção: o sujeito separou-se da mulher;
4) transformação: depois de se separar da mulher, o sujeito só via defeitos e vícios na ex-mulher, ela passara de santa a energúmena;
5) conclusão: o sujeito passou a desconfiar de todas as mulheres.
Charles Fourier (1772-1837), de quem pretendo falar-vos, foi um notável utopista com uma percepção arguta da espécie humana. Isso mesmo tê-lo-á levado a dizer, a propósito do seu humorístico “Quadro Analítico da Corneação”, que «O que acima de tudo os Civilizados temem é a verdade, e a minha escala dos adultérios tem contra si o defeito de ser verídica.» O adultério, eis o assunto deste pequeno livro já merecedor de, pelo menos, duas traduções distintas para língua portuguesa (uma de Aníbal Fernandes, para a &etc, outra de Helder Guégués, para a Cavalo de Ferro). Porque vos trago eu semelhante livro nas actuais circunstâncias? Ora, haverá tema mais difícil de encarar em termos humorísticos do que a traição?
Colocai-vos no lugar do traído, que em Fourier, infelizmente, é quase invariavelmente do género masculino. Limitações que o tempo se encarregou de corrigir. Traído no contexto doméstico ou político, traído no trabalho ou na amizade, é sentimento, o da traição, acerca do qual difícil se torna o riso. E no entanto Luigi Pirandello (1867-1936) desmentir-nos-á. Lá iremos. Por ora pergunto-me em que tipo de cornudo encaixa o perfil do indivíduo acima descrito? Nos mais de 70 sugeridos por Fourier não aparece nenhum que se lhe aproxime, nem o humilhado ou perplexo ou ensimesmado, nem o misantropo, sendo talvez plausível que a determinado momento se aproxime do cornudo corneta:
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