«AVENTURISMO EXTREMAMENTE PERIGOSO»
Escrevi sobre o livro em 2017, quando
saiu: aqui. Regresso agora a ele, numa tentativa de compreensão do que se passa
actualmente na Ucrânia. E dos perigos que corremos insistindo na retórica da
guerra, incentivando «um aventurismo extremamente perigoso» e contribuindo muito
pouco para o desagravamento das hostilidades e o fim da guerra. Estar contra a
guerra não pode ser estar a favor de um dos lados da guerra, seja ele o invasor
ou o invadido. Estar contra a guerra só pode ser estar a favor do armistício e
de uma tentativa séria para sentar ambas as partes à mesa antes que o
descalabro seja total e a devastação ainda mais ampla. Alguns excertos de
Optimismo e Não Desespero (Edição Elsinore, Novembro de 2017), de Noam Chomsky
e C. J. Polychroniou. Chomsky é professor emérito do departamento de
Linguística e Filosofia do MIT, Polychroniou é economista político. A tradução
é de Paulo Barata.
Quais
as metas e os objectivos da política dos EUA relativamente à Ucrânia, além de
agitar problemas e depois deixar que outras forças façam o trabalho sujo?
Logo após a queda do Muro de Berlim e do
colapso subsequente da URSS, os EUA começaram a tentar alargar o seu domínio,
nomeadamente através da adesão à NATO, a regiões libertadas do controlo russo —
em violação das promessas verbais a Gorbachev, cujos protestos foram ignorados.
A Ucrânia será certamente o próximo fruto maduro que os Estados Unidos esperam
conseguir colher desta árvore.
Não
terá a Rússia uma preocupação legítima relativamente à potencial aliança da
Ucrânia com a NATO?
Uma preocupação extremamente legítima, e
sobre a expansão da NATO em geral. Isto é tão óbvio que chega a ser tema do
artigo de capa da actual edição da principal revista do establishment norte-americano, a Foreign Affairs, pelo investigador de relações internacionais John
Mearsheimer, que observa que os Estados Unidos são a raiz da actual crise
ucraniana.
Olhando
para a actual situação no Iraque, na Síria, na Líbia, na Nigéria, na Ucrânia,
no Mar da China e mesmo em partes da Europa, o recente comentário de Zbigniew
Brzezinski na [cadeia televisiva] MSNBC, segundo o qual «estamos diante de um
tipo de caos que se espalha dinamicamente em todas as partes do mundo», parece
bastante pertinente. Quanto deste desenvolvimento é devido ao declínio de uma
potência hegemónica global e ao equilíbrio de poder que existia na era da
Guerra Fria?
O poder dos EUA atingiu o seu pico em
1945 e tem vindo a diminuir de forma constante desde então. Houve muitas
mudanças nos últimos anos. Uma delas é a ascensão da China enquanto grande
potência. Outra é a América Latina ter-se libertado do controlo imperial (e, no
século passado, do controlo norte-americano) pela primeira vez em 500 anos.
Relativo a estes desenvolvimentos é o surgimento do bloco BRICS (Brasil,
Rússia, Índia, China, África do Sul) e da Organização de Cooperação de Xangai,
com sede na China e que inclui a Índia, o Paquistão e os Estados da Ásia
Central, entre outros.
Ainda assim, os EUA continuam a ser a potência global mais dominante,
com um enorme avanço em relação aos restantes.
(…)
A
NATO, uma aliança militar ainda hoje dominada pelos EUA, tem alargado a sua
presença na Europa de Leste, empenhada em travar um renascimento russo, criando
divisões entre a Europa e a Rússia. Os Estados Unidos estão à procura de um
conflito militar com a Rússia, ou serão estas jogadas motivadas pela
necessidade de manter o complexo militar-industrial intacto num mundo
pós-Guerra Fria?
A NATO é seguramente uma aliança militar
dominada pelos EUA. Com a URSS à beira do colapso, Mikhail Gorbachev propôs a
criação de um sistema de segurança que abrangesse todo o continente, o que os
Estados Unidos rejeitaram, insistindo antes em não só preservar como expandir a
NATO. Gorbachev concordou em permitir que uma Alemanha unificada se unisse à
NATO, uma concessão notável à luz da História. Havia, no entanto, um quid pro
quo: que a NATO não se expandisse «uma polegada para o Leste», o que significava
a Alemanha Oriental. Isso foi prometido pelo presidente Bush pai e pelo seu
secretário de Estado, James Baker, mas não ficou firmado em papel, foi um
compromisso verbal, e mais tarde os Estados Unidos alegaram que, por essa
razão, não seria vinculativo.
A cuidada pesquisa de arquivo de Joshua R. Itzkowitz Shifrinson,
publicada na primavera passada no prestigiado jornal International Security, da
Universidade de Harvard e do MIT, revela muito plausivelmente que isso foi um
engano intencional, uma descoberta significativa e que resolve
substancialmente, penso eu, a disputa académica sobre o tema. A NATO
expandiu-se para a Alemanha Oriental e, em anos posteriores, até à fronteira
russa. Esses planos foram severamente condenados por George Kennan e por outros
comentadores altamente respeitados, porque provavelmente levariam a uma nova
Guerra Fria, já que a Rússia se sentiu, naturalmente, ameaçada. A ameaça
tornou-se mais grave quando a NATO convidou a Ucrânia a participar em 2008 e
2013. Como os analistas ocidentais reconhecem, isto estende a ameaça ao núcleo
das preocupações estratégicas russas, uma questão discutida, por exemplo, por
John Mearsheimer num artigo de capa numa das principais revistas do
establishment, a Foreign Affairs.
No entanto, não acho que o objectivo seja parar o renascimento da Rússia
ou manter o complexo militar-industrial intacto. E os Estados Unidos certamente
não querem um conflito militar, o que destruiria não só os dois lados como o
resto do mundo. Ao invés, parece-me o esforço normal de uma grande potência
para expandir o seu domínio global. Mas é inegável que aumenta a ameaça de
guerra, mesmo que por acidente, como Kennan e outros têm avisado com
presciência.
Na
sua opinião uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a Rússia continua a
ser uma possibilidade real no mundo de hoje?
Uma possibilidade extremamente real e
até em tendência crescente. Isto não é apenas o meu julgamento. É igualmente o
julgamento dos especialistas do Boletim dos Cientistas Atómicos, que
estabeleceram o Relógio do Juízo Final; do antigo secretário da Defesa William
Perry, um dos especialistas mais experientes e respeitados nestas matérias; e
de inúmeros outros que não são de maneira nenhuma alarmistas. O número de
quase-acidentes que poderiam ter sido terminais é chocante, já para não
falarmos de um aventurismo extremamente perigoso. Parece milagroso que tenhamos
sobrevivido à era das armas nucleares, e brincar com o fogo desta forma é irresponsável
ao extremo. Na verdade, essas armas deveriam ser removidas da Terra, como até
mesmo muitos dos analistas mais conservadores reconhecem — Henry Kissinger e
George Shultz, entre outros.
(…)
Há
muito que defende que as armas nucleares representam uma das duas maiores
ameaças à Humanidade. Porque serão as grandes potências tão relutantes em
abolir as armas nucleares? A existência destas armas não representa uma ameaça
à própria existência dos «mestres do Universo»?
É notável observar quão pouco
preocupados se mostram os principais planeadores perante as perspectivas da sua
própria destruição — não será uma novidade nos assuntos globais (aqueles que
iniciaram guerras muitas vezes acabaram devastados), mas agora apresenta-se a
uma escala enormemente diferente. Temo-lo visto desde os primeiros dias da era
atómica. Inicialmente, os Estados Unidos eram praticamente invulneráveis,
embora houvesse uma ameaça séria no horizonte, os MBIC (mísseis balísticos
intercontinentais) com ogivas que carregam bombas de hidrogénio. A pesquisa de
arquivo recente confirma aquilo que já supúnhamos: não existia um plano, nem
qualquer intenção, de chegar a um acordo de tratado que proibisse essas armas,
embora haja boas razões para crer que poderia ter sido viável. As mesmas
atitudes prevalecem nos dias de hoje, em que uma vasta acumulação de forças
mesmo em cima da rota tradicional de invasão da Rússia representa uma séria
ameaça de guerra nuclear.
Os planeadores explicam com bastante lucidez porque é tão importante
manter essas armas. Uma das explicações mais claras encontra-se num documento parcialmente
desclassificado da era Clinton, emitido pelo Comando Estratégico (STRATCOM),
responsável pela política e uso de armas nucleares. O documento intitula-se Essentials of Post-Cold War Deterrence [Bases
da Dissuasão no Pós-Guerra Fria]; o termo «dissuasão», como «defesa», é um
orwellismo militar referente a coerção e ataque. O documento explica que «as
armas nucleares ensombram sempre qualquer crise ou conflito» e devem, portanto,
estar disponíveis e prontas a usar. Se o adversário sabe que as temos e podemos
utilizá-las, poderá então recuar — uma característica comum da diplomacia de
Kissinger. Neste sentido, as armas nucleares são constantemente usadas (um
ponto em que Dan Ellsberg insiste) tal como se utiliza uma arma de fogo para
assaltar uma loja sem nunca chegar a disparar. Uma das secções do relatório
intitula-se «Manutenção da Ambiguidade» e aconselha o seguinte: «Os planeadores
não devem ser demasiado racionais quanto a determinar (…) aquilo que o
adversário mais valoriza» e a que deve ser dada prioridade enquanto alvo.
«A noção de que os EUA possam tornar-se irracionais e vingativos caso os
seus interesses vitais sejam atacados deve ser parte integrante da
personalidade nacional que projectamos», diz o relatório, acrescentando que é
«benéfico» para a nossa postura estratégica se «alguns elementos aprecem estar
potencialmente fora de controlo». É a «teoria do louco» de Nixon, mas desta vez
claramente articulada num documento de planeamento interno, não apenas uma
recomendação de um qualquer conselheiro (Haldeman, no caso de Nixon).
Como outros documentos anteriores da Guerra Fria, até foi praticamente
ignorado (referi-me a ele várias vezes, sem que isso tenha espoletado, que eu
saiba, qualquer resposta). Esta negligência é bastante interessante. Não será
necessário um grande salto lógico para demonstrar que o registo documental após
o desaparecimento da alegada ameaça russa seria extremamente esclarecedor
quanto ao que realmente acontecia anteriormente.
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