sexta-feira, 27 de maio de 2022

A QUESTION OF LUST (1986)

 


Se for pelos pecados capitais, tenho o paraíso garantido. Só se for a preguiça a trair-me. Dependerá do que por lá considerarem preguiça. Às vezes penso que até a dormir trabalho, por isso acordo sempre tão cansado. As pálpebras agora cedem com outra facilidade, de repente a fadiga tolda-me os sentidos e captura-me em meia dúzia de roncos como um motor a ganhar força para uma longa viagem. Infelizmente, a viagem é sempre mais curta do que o desejável. Acordo assim que adormeço para ficar a desejar adormecer sonhando o resto do dia com um apagamento geral dos sentidos e do pensamento. Talvez devesse comprar óculos para dormir, uns óculos especiais que me permitissem não ver no escuro, que apagassem de vez os nomes e fizessem as imagens dos nomes evaporar-se da cabeça como de uma chaleira se evapora a água para o chá. Ah, se a cabeça fosse uma página limpa e tudo pudesse recomeçar como se nada alguma vez tivesse sido. Recomeçar não para repetir ou fazer diferente, mas antes para continuar recomeçando perpetuamente, apagando dia a dia, hora a hora, segundo a segundo, cada um dos instantes deixados para trás como vestígios de uma passagem que envergonha. Uma existência rasurada, sem rasto, isso, uma existência que a cada passo varresse as pegadas, sem sombra, que a cada gesto apagasse o mínimo vestígio, uma existência invisível e inconsequente, para mim, para os outros, para o próprio ar que respiro. Uma questão de luxúria, definitivamente. O pecado do silêncio luxuriante e da solidão assassina. Trocava um paraíso assim na terra por qualquer um dos infernos nos céus.

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