A
ouvir uma ópera de Miguel Azguime.
Ao longo do dia as cores variam conforme
a temperatura dos ouvidos. Acordas na escuridão ao abrires as pálpebras,
permitindo que no corpo entrem as primeiras imagens: uma rola que canta, um cão
que ladra, o motor de um carro que passa, uma sirene dardejando o ar ao longe,
o vento nas copas das árvores, uma torneira que pinga, tu a dormires ao teu
lado, a tua própria respiração. Nesse instante percebes como o corpo te foge,
procuras resgatá-lo com higiene e pequeno-almoço, café, eventualmente um
cigarro, se ainda fumasses. Agora a sombra que projectas na terra é o fumo do
teu corpo a arder. São já outras as cores: as solas de quem caminha, um avião a
cruzar os céus, carros agitados movimentando-se nas ruas como animais
enjaulados, a louça nas esplanadas, alguém que grita ao ser assaltado, uma
chávena quebrando-se ao encontrar o chão. Recebes uma primeira notificação como
quem é lembrado de que está vivo e o mundo existe e algo acontece. Só então
respiras fundo, tapas os ouvidos com os indicadores, escutas o sangue a correr
nas veias e o pulsar do coração no fundo do peito. Haverá mundo para lá disto?
Assalta-te a memória vaga de uma mãe a lavar roupa num tanque, de um pai a
cavar terra com uma enxada herdade do avô que já esqueceste, a avó sentada numa
poltrona aproveitando o sol que lhe banha os trajes escuros enquanto lê livros
de orações. Para lá disto o que haverá? Neste mundo em que homens se ocupam de
matar outros homens, destruindo casas como quem deita abaixo uma árvore para se
aquecer no inverno, neste cemitério de gente anónima, sem data de nascimento,
as cores falam connosco para nos sentirmos menos sós. Ouço-as dizerem-me: o
Verão começou, o país está numa situação de seca extrema, dentro de nós ainda chove.
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