Nicolau II é um espírito fraco: bom, teimoso e dissimulado por fraqueza, sensibilidade e teimosia. Chefe de família, vivendo cheio de amor dos seus, ele é bom marido, bom filho e bom pai. Ferido no Japão, vítima dum atentado quando czarvitch, parece subir ao trono com uma estrela de desgraça na fronte. Tendo feito um verdadeiro casamento de amor, vivendo numa íntima ternura e grande inquietação da vida familiar, é ainda, desgraça sua, uma fatalidade que o leva a assistir à interferência dos negócios públicos com os interesses de família. É em grande parte a ansiedade da vinda dum herdeiro, que tanto se faz esperar em desespero, que traz à corte de Nicolau toda uma canalha de bruxos, médiuns, loucos e charlatães, acabando, como se sabe, pela subordinação de todos às sugestões demoníacas dum possesso chamado Rasputine. A presença de Rasputine na intimidade da imperatriz e dos filhos é um quadro de um jardim de lírios por onde passeasse uma enorme tarântula. Primeiro é a desejada gravidez da czarina, que aceita as imposições espíritas do médium Filipe, que lhe fora trazido de presente da cidade francesa de Lyon. É o espírito de Alexandre III que, pela boca do charlatão Filipe, garante este e as suas feitiçarias. A imperatriz acaba por acreditar na gravidez, que, depois, se reconhece falsa. Filipe retira da Rússia. Então ordena-se ao clero a canonização dum eremita do fim do século XVIII, chamado Serafim. A czarina acaba por ter um filho de aparÊncia magnífica, mas tendo recebido em herança mendeliana a hemofilia. E agora são novas tentativas de recurso à magia, por intermédio de célebre Papus, dum monge Heliodoro, acabando pelo verdadeiro encontro — o do possesso Rasputine.
Marcado na fronte pelo sabre dum fanático no Japão, vergastado pela dúvida horrível sobre a saúde do filho, preso do amor absorvente e um pouco louco de sua mulher, tivera ainda o pobre czar mais uma manifestação da desgraça que o persegue. Quando da cerimónia, em Moscovo, do coroamento e sagração, o czar quer dar grandes presentes e manda fazer barrcas para esse efeito. A multidão russa corre num ímpeto caótico e precipita-se nas ravinas, esmagando-se uns aos outros numa horrível catástrofe de milhares de mortes. Este pobre czar, sobre cuja cabeça se acumulam em expiação todos os crimes e erros dos antepassados, é uma das mais trágicas figuras da história. Quando estende os braços para tomar a nação num abraço, é a carne russa espezinhada que lhe responde num gemido. As missas pelas vítimas dão ocasião a tumultos de estudantes e operários, e o pobre czar tem de consentir em repressões que os seus exageram e fazem cruéis. Tenta uma conferência da Paz, um acordo sobre o limite de armamentos, ele que terá de ser o primeiro a desembainhar a espada para o início da mais horrível guerra dos homens e dos povos. O acordou falhou, é claro.
A vida da Rússia era em crise; o desenvolvimento, em ritmo acelerado, da grande indústria gerava crises de superprodução e suas consequências terríveis. As lutas socialistas dos sociais-democratas e dos socialistas-revolucionários tomam aspecto inquietante. Se os primeiros parecem menos perigosos e são mais poupados, os segundos organizam de novo o terror. Os governos organizam de novo uma contra-revolução, que é tipicamente russa. Dela partem provocações, progroms de judeus, e até assassinatos de ministros, como o de Plhve e Witte. Os sociais-democratas são mais perigosos, pois obedecem a planos calculados, serenos e sem romantismo, ou antes, com o romantismo único da combatividade utilitária e eficiente. Mas, por isso mesmo, escapam melhor às garras duma polícia intrigante e feroz. A política externa é orientada par ao Extremo Oriente, e, depois de ter obtido Porto Artur, entra na via da conquista na Manchúria e Coreia. Uma exploração das florestas, em que entram membros da família imperial, aguça as cobiças e leva à guerra com o Japão. Esta foi a mais completa prova da incapacidade moral das classes dirigentes do Império russo. Intrigas de generais, demora ou recusa no envio de tropas, mobilização de comboios para o serviço particular dos comandantes, o respeito sagrado das horas do seu sono, incapacidade técnica e profissional duma armada inferiorizada, tudo isto leva a uma surpreendente e angustiosa derrota. A esquadra russa começa, por uma ilusão do pânico, experimentando os seus canhões sobre pobres pescadores.
A Inglaterra ameaça de guerra, e, se não fora a amizade da França, já agora aliada da Rússia, a ameaça podia ter sido efectivada. No meio de tudo isto, o czar, bom, inocente e quase infantil, tem uma entrevista com o kaiser, que o leva a assinar um pacto de inconsciente traição à França. Pacto, que Witte conseguiu anular. Como sempre os revolucionários tentam aproveitar da derrota; mas, forçando demais as exigências, nada conseguem de pronto. É então que o pope Gapone, de acordo com a polícia, organiza a célebre aprada, que, também de acordo com elementos sociais-democratas, se transforma numa intimação. O czar não os recebe, mas esta imensa multidão desarmada é recebida à metralha, que faz inúmeras vítimas, incluindo mulheres e crianças. Os revolucionários respondem com atentados, sucumbindo logo o tio do czar, governador de Moscovo. É então que o imperador promete novas medidas legislativas. Começa pela tolerância religiosa dada ao raskol (sempre o raskol), aos judeus e às confissões estrangeiras.
Mas a rebelião cresce e a revolta dos camponeses faz arder a Rússia, numa chama de ódios, pilhando, matando proprietários, e surge a «União dos Camponeses» com um programa radical, equivocamente comunista. (...)
Leonardo Coimbra, in A Rússia de Hoje e o Homem
de Sempre (1935). Pedro, o Grande, Catarina Primeira e Pedro II, Ana, Ivã VI & Isabel, Pedro III e Catarina II, Paulo I, Alexandre I, Nicolau I, Alexandre II, Alexandre III.
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