Entre os Textos
Mínimos (1973) de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) há uma quadra que
sempre me impressionou bastante: «Solto na jaula / o tigre observa / o Jardim
Zoológico /do mundo». Como pode o tigre, que na poesia ganhou um lugar especial
após William Blake (1757-1827), estar solto dentro de uma jaula? Será o tigre
uma metáfora do poeta? Imagino o movimento de um desses felinos selvagens que,
para entretenimento das massas civilizadas, resistem encarcerados andando agitadamente
de um lado para o outro, percorrendo de parede a parede os cativeiros minúsculos
que os ligam ao nosso mundo ansioso através de gradeamentos de ferro.
A inversão proposta pelo poema de Drummond — Jardim Zoológico são as cidades, o mundo é o nosso — é do mesmo tipo daquela que fui encontrar no poema Puma no Zoo de Chapultepec, de Gregory Corso (1930-2001): «Gato comprido tranquilo lento veloz macio / Que pontuação, de quem era a coreografia que dançaste / quando a cortina caiu no fim? / Poderá permanecer tão poderosa graça / aqui, completamente só, neste palco 2,5 por 3? / Irão dar-te mais uma oportunidade / se calhar para dançar as Sierras? / Pareces tão triste; ao olhar para ti / penso na Ulanova / trancada num quartinho mobilado / em Nova Iorque, na East 17th Street / no bairro porto-riquenho». Esta tradução de Hugo Pinto Santos encontra-se num livro precioso intitulado Gasolina (Barco Bêbado, Dezembro de 2021), o primeiro deste relevante poeta da chamada geração beat a ser traduzido para português (havia apenas alguns poemas espalhados por antologias).
A comparação entre o puma enjaulado num zoo mexicano e uma tal Ulanova
(nome de conhecida bailarina) trancada num quarto de Nova Iorque, leva-me a
pensar neste poema mais como um retrato da vida doméstica nas sociedades burguesas do que como uma
impressão da passagem do poeta pelo México. Em South of Our Selves, dedicado à presença mexicana nos poemas de
Kerouac, Corso, Ginsberg, Levertov e Hayden, o ensaísta Glenn Sheldon afirma
que Corso não só recusa romantizar a Cidade do México, denunciando-lhe as
misérias e a sujidade, como denota empatia pelas criaturas roubadas à liberdade
no contexto de alienação de que o próprio foi objecto desde muito cedo. E cita
Kirby Olson: «Corso escreve frequentemente sobre zoos nos seus poemas… porque
acentuam o estado de cativeiro dos animais, mas sugerindo sempre que a metáfora
facilmente se aplica de igual modo ao estado de cativeiro dos instintos animais
nos seres humanos.»
Corso é, antes de mais, um poeta da liberdade. Sendo um poeta da liberdade, é um poeta que vive o desespero da busca de beleza num mundo que o priva dessa liberdade. Talvez devamos sublinhar estarmos a referir-nos a um homem filho de emigrantes italianos nos EUA, abandonado pela mãe assim que nasceu — «Uma jovem mãe enche-me a boca com um pálido peito à milanesa / Mamo e luto grito Ó olímpica mãe / este peito não me é nada familiar» (pp. 16-17) —, atirado pelo pai para orfanatos, detido pela primeira vez aos 13 anos, com posteriores e diversas experiências de internamento e clausura, onde, paradoxalmente, foi aprofundando o gosto pela poesia com leituras de clássicos, enciclopédias e dicionários. Disto também nos dá conta a nota de Levi Condinho reproduzida na segunda badana deste volume. É uma vida que ecoa nos poemas, quer quando nos transporta até ao Local de Nascimento Revisitado, quer quando recorda o pai em Foi Isto a Minha Refeição ou as relações com mafiosos italianos em Extravagância Italiana e O Último Gangster.
No entanto, o que esta edição portuguesa, enriquecida pelos desenhos de Cecília Corujo, me tornou mais visível foi a recorrência à figura da criança, numa eventual reminiscência da infância, invariavelmente em tom negativo. Em Visão de Roterdão, «Criancinhas loiras em blusas brancas / rastejam pelas ruas roem as suas casas»; a elegia O Último Calor de Arnold, sem dúvida um dos grandes poemas de Gregory Corso, lembra um jovem “caído” da Ponte de Brooklyn; depois há as «velhas fotos das raparigas da minha infância» (p. 33), o funeral extravagante de um menino com um mês de idade, num poema que faz justiça a quem refere o humor negro deste poeta (tão pequenino o caixão, tantos e tão grandes os Cadillacs que o levam), entre outras, diversas referências em que a criança surge associada à morte: «O corpo da criança é mais comprido / comprido como a terra / toda a gente anda em cima dele, uns em cadeiras de rodas, / longa louca invejosa viagem» (p. 51). Nem o jazz nem a pintura renascentista conseguiram resgatar a poesia de Gregory Corso de panorâmicas cruéis sobre as cidades a que alude, inquietando-nos com as suas visões, ora impressionistas, ora expressionistas, de um mundo que é um zoológico de bestas domesticadas pela razão.
A inversão proposta pelo poema de Drummond — Jardim Zoológico são as cidades, o mundo é o nosso — é do mesmo tipo daquela que fui encontrar no poema Puma no Zoo de Chapultepec, de Gregory Corso (1930-2001): «Gato comprido tranquilo lento veloz macio / Que pontuação, de quem era a coreografia que dançaste / quando a cortina caiu no fim? / Poderá permanecer tão poderosa graça / aqui, completamente só, neste palco 2,5 por 3? / Irão dar-te mais uma oportunidade / se calhar para dançar as Sierras? / Pareces tão triste; ao olhar para ti / penso na Ulanova / trancada num quartinho mobilado / em Nova Iorque, na East 17th Street / no bairro porto-riquenho». Esta tradução de Hugo Pinto Santos encontra-se num livro precioso intitulado Gasolina (Barco Bêbado, Dezembro de 2021), o primeiro deste relevante poeta da chamada geração beat a ser traduzido para português (havia apenas alguns poemas espalhados por antologias).
Corso é, antes de mais, um poeta da liberdade. Sendo um poeta da liberdade, é um poeta que vive o desespero da busca de beleza num mundo que o priva dessa liberdade. Talvez devamos sublinhar estarmos a referir-nos a um homem filho de emigrantes italianos nos EUA, abandonado pela mãe assim que nasceu — «Uma jovem mãe enche-me a boca com um pálido peito à milanesa / Mamo e luto grito Ó olímpica mãe / este peito não me é nada familiar» (pp. 16-17) —, atirado pelo pai para orfanatos, detido pela primeira vez aos 13 anos, com posteriores e diversas experiências de internamento e clausura, onde, paradoxalmente, foi aprofundando o gosto pela poesia com leituras de clássicos, enciclopédias e dicionários. Disto também nos dá conta a nota de Levi Condinho reproduzida na segunda badana deste volume. É uma vida que ecoa nos poemas, quer quando nos transporta até ao Local de Nascimento Revisitado, quer quando recorda o pai em Foi Isto a Minha Refeição ou as relações com mafiosos italianos em Extravagância Italiana e O Último Gangster.
No entanto, o que esta edição portuguesa, enriquecida pelos desenhos de Cecília Corujo, me tornou mais visível foi a recorrência à figura da criança, numa eventual reminiscência da infância, invariavelmente em tom negativo. Em Visão de Roterdão, «Criancinhas loiras em blusas brancas / rastejam pelas ruas roem as suas casas»; a elegia O Último Calor de Arnold, sem dúvida um dos grandes poemas de Gregory Corso, lembra um jovem “caído” da Ponte de Brooklyn; depois há as «velhas fotos das raparigas da minha infância» (p. 33), o funeral extravagante de um menino com um mês de idade, num poema que faz justiça a quem refere o humor negro deste poeta (tão pequenino o caixão, tantos e tão grandes os Cadillacs que o levam), entre outras, diversas referências em que a criança surge associada à morte: «O corpo da criança é mais comprido / comprido como a terra / toda a gente anda em cima dele, uns em cadeiras de rodas, / longa louca invejosa viagem» (p. 51). Nem o jazz nem a pintura renascentista conseguiram resgatar a poesia de Gregory Corso de panorâmicas cruéis sobre as cidades a que alude, inquietando-nos com as suas visões, ora impressionistas, ora expressionistas, de um mundo que é um zoológico de bestas domesticadas pela razão.
2 comentários:
Bela postagem. Essa edição é bilíngue?
Não.
Traz também traduzido o prefácio do Ginsberg da edição original.
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