quarta-feira, 17 de agosto de 2022

CARTA AO JOVEM POETA

   Esta noite sonhei que me encomendaram uma carta ao jovem poeta. Era mais ou menos assim:

 
Querido jovem poeta,
   Não espero que estejas bem. Se és jovem poeta, tal estado de alma seria um contra-senso. Já é disparatado seres jovem poeta, agora imagina seres jovem poeta bem-disposto. Que bizarria. Jovem poeta que é jovem poeta tem de parecer inexpressivo e mostrá-lo ao mundo. Nada de sorrisos nem de choradeira, faz cara de pedra impermeável a sentimentos e a emoções. Nunca sorrias para as fotografias. O poeta que sorri para a fotografia desce ao nível da ralé, do povo, da escumalha, das gentes comuns, normais e banais. Enfim, desce ao nível das pessoas que vão a feiras medievais e tiram selfies em baloiços.
   Esta é a primeira lição que o jovem poeta deve assimilar: não estar bem nem mal, estar assim-assim como o doce da casa. A segunda é: se estiver bem, não sorrir para as fotografias. Não há mais conselhos a dar. Em boa verdade, até porque não é aconselhável dar conselhos a um jovem poeta. Seria uma desconsideração que o jovem poeta não suportaria, a não ser que não fosse poeta e, valha-nos Deus, que não fosse jovem.
   O jovem poeta não precisa de conselhos, nasceu com eles no sangue, tem ADN de conselhos, pelo que uma carta ao jovem poeta não poderá ser uma carta de conselhos nem de sugestões nem de ensinamentos nem de lições. Essas são missivas redundantes. Como deverá, então, ser a carta ao jovem poeta? Boa questão. Só pode ser uma carta de amor, ridícula como as demais.
   Querido jovem poeta,
   Estás no ponto. Amo-te mais do que aos vinhos do Douro. És como o naco na pedra nem bem nem mal passado, tenrinho, maravilhosamente perfumado. És como os coentros nas migas de espargos. Que poderei eu, que poderá alguém acrescentar a tamanha beleza? Os teus versos são sal na sopa insossa, açúcar no pudim zero, são palavras bio com bífidos probióticos integrais. Trazem saúde a qualquer alma degenerada, estás mesmo naquele nível de clareza e de exactidão que conquistará as redes sociais. Partilha-te, viraliza-te (vitraliza-te?), mas sempre com fotografias a preto e branco ou de cores neutras. E sem sorrir. Jamais mostres os dentes.
   Escreve pouco, muito pouco, quase nada, escreve o menos possível. Não escrevas de todo. Mostra que és exigente contigo mesmo, mais do que és com a junta de freguesia do teu bairro. Deixa que os poemas se escrevam por si, simples, translúcidos, sobre coisas quotidianas tais como... o que é quotidiano na vida de um jovem poeta? Ah, sim, claro, que tolice, versos quotidianos como versos, poemas quotidianos como poemas, estrofes quotidianas como estrofes.
   Jamais cantes o mar e a lua e as árvores e os pássaros, as coisas do mundo. Canta os poemas. Diz que o poema bateu asas e libertou-se da gaiola, fugiu da estrofe e cagou para a página. Qualquer coisa deste género exceptuando o verbo escatológico, obviamente. O poema tem de ser limpo, mesmo que o pássaro seja um grande porcalhão. Tu não cantarás os pássaros, tu és grande, tu cantarás como os pássaros. Sempre que pronunciares a palavra poesia será como um pássaro a cantar num mundo sem pássaros, num mundo todo ele literalmente literário.
   Escreve também sobre o campo, mesmo que nunca tenhas entrado numa pocilga ou num aviário, mesmo que não faças a mínima ideia da diferença entre uma curgete e um pepino, mesmo que nunca tenhas regado, mondado, podado, semeado, que para ti o campo deve ser o mesmo que a cidade: um lugar onde se está. Em poesia, o bucolismo deve ser como um evento da ModaLisboa. Evita clichés do tipo ó silêncio do campo, ó sossego do campo, ó cheiro a terra molhada. Acredita, não há silêncio nem sossego no campo e a terra molhada pode tresandar pa' caneco. Pardon my french.
   O jovem poeta fala do campo como se o campo fosse o vaso que tem na varanda e que rega todas as manhãs até que o poema desabroche como tomate-cereja. É isto, mas se disseres cherry em vez de cereja. O jovem poeta semeia palavras, rega-as com lágrimas para que os poemas irrompam da terra com ramos de versos que é suposto darem frutos poliglotas. Mas não dão, a não ser que venham a ser aproveitados para epígrafes de teses de mestrado.
   No universo do jovem poeta, tudo é poema, tudo é verso, tudo é poesia, excepto os outros poetas. Neste domínio sensível, deverá o jovem poeta ser implacável como o 605 forte. Os outros poetas devem ser tratados pelo jovem poeta como insectos a eliminar. A excepção são os amigos brasileiros que possam vir a arranjar-nos uma passagem para Paraty. Mete amigos entre aspas, assim: “amigos”. Diz o pior possível dos teus contemporâneos conterrâneos, coloca-te à margem em tom alegórico, com parábolas e meias palavras. Não conspurques a clareza da tua voz indo directo aos assuntos como um porco a chafurdar na própria porcaria. O jovem poeta não sorri e não se dá, é uma voz solitária e independente, não gosta de grupos e quando, por artes mágicas, se apanha em festivais ou mesas redondas é porque não tem nada que ver com aquilo e isso mesmo deverá transparecer, mais na pose do que no discurso.
   Nada impede que o jovem poeta seja simpático, desde que não sorria quando é fotografado e que, em havendo quem lhe peça que leia um dos seus poemas em voz alta, o faça numa voz alta muito baixa, timidamente, com tom monocórdico que não comprometa a solidão do jovem poeta, a timidez do jovem poeta, a stone face do jovem poeta.
   Jovem poeta, meu querido, meu amigo, tu és o futuro mesmo que o futuro seja igual para todos. Sê feliz, mas não o exibas. Nem te atrevas.

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