Comecei a ouvir Chico Buarque em casa de
um amigo de infância onde rodava no vinil “Meus Caros Amigos”. Recordo a
surpresa causada pelo início abrupto de “O que será”, como se a música viesse
de um lugar que nos havia sido proibido. Mas a canção que mais mexeu comigo,
durante muitos anos, confesso, foi “Mulheres de Atenas”. Como compreender e
aceitar aquela letra que parecia fazer uma apologia da submissão? Foi preciso
descobrir a ironia para perceber o verdadeiro significado daquelas mulheres, no
fundo o povo sob o jugo da ditadura militar então em vigor no Brasil. O álbum é
de 76. Leva tempo a maturação da ironia no labirinto do pensamento, essa mesma
ironia que nunca como hoje esteve tanto sob a ameaça de uma discursividade
literal e da condescendência dos utilizadores de redes sociais para com o
algoritmo da tolerância zero que determina o que é ou não aceitável. Acusado de
discurso de ódio, o satirista é automaticamente silenciado sem direito a defesa
no tribunal eclesiástico de Silicon Valley. Praticamente toda a gente aceita e
participa disto sem protesto, adequando modos de expressão e adoptando teses acerca
de lugares de fala que também vêm dando ares da sua desgraça fora da rede. Como
é que se canta em “Passaredo”? «Bico calado, muito cuidado / Que o homem vem aí».
Não foi o próprio Chico Buarque acusado de machismo por causa de uma canção? A
literalidade vai dar-nos cabo da interpretação, a ponto de qualquer dia, à
força de sermos tão literais, ainda acabarmos à procura da nossa própria sombra
em fuga depois de se fartar de conviver connosco.
1 comentário:
"Mulheres de Atenas" e "Construção". Este último cheguei a pesar ser de Caetano Veloso, que tem também gosto muito, mas que não tem a acutilância de CB.
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