terça-feira, 16 de agosto de 2022

MULHERES DE ATENAS (1976)

 


Comecei a ouvir Chico Buarque em casa de um amigo de infância onde rodava no vinil “Meus Caros Amigos”. Recordo a surpresa causada pelo início abrupto de “O que será”, como se a música viesse de um lugar que nos havia sido proibido. Mas a canção que mais mexeu comigo, durante muitos anos, confesso, foi “Mulheres de Atenas”. Como compreender e aceitar aquela letra que parecia fazer uma apologia da submissão? Foi preciso descobrir a ironia para perceber o verdadeiro significado daquelas mulheres, no fundo o povo sob o jugo da ditadura militar então em vigor no Brasil. O álbum é de 76. Leva tempo a maturação da ironia no labirinto do pensamento, essa mesma ironia que nunca como hoje esteve tanto sob a ameaça de uma discursividade literal e da condescendência dos utilizadores de redes sociais para com o algoritmo da tolerância zero que determina o que é ou não aceitável. Acusado de discurso de ódio, o satirista é automaticamente silenciado sem direito a defesa no tribunal eclesiástico de Silicon Valley. Praticamente toda a gente aceita e participa disto sem protesto, adequando modos de expressão e adoptando teses acerca de lugares de fala que também vêm dando ares da sua desgraça fora da rede. Como é que se canta em “Passaredo”? «Bico calado, muito cuidado / Que o homem vem aí». Não foi o próprio Chico Buarque acusado de machismo por causa de uma canção? A literalidade vai dar-nos cabo da interpretação, a ponto de qualquer dia, à força de sermos tão literais, ainda acabarmos à procura da nossa própria sombra em fuga depois de se fartar de conviver connosco.

1 comentário:

Claudia Sousa Dias disse...

"Mulheres de Atenas" e "Construção". Este último cheguei a pesar ser de Caetano Veloso, que tem também gosto muito, mas que não tem a acutilância de CB.