terça-feira, 9 de agosto de 2022

ERAM TRÊS E NÃO SE CALAVAM

 


   Eram três e não se calavam. Maldita a hora em que optei por aquela aberta para montar o chapéu-de-sol e estender a toalha onde me deitaria a ler a prosa de Esménio.
   A mais palradora, de cabelo encaracolado grisalho, procurava num telemóvel os cartazes das festas de Ferrel e Atouguia da Baleia. Estava interessada nos artistas do dia, porventura julgando-se na posse de argumentos irrecusáveis para uma noitada depois da praia. A mais velha das três, pelo menos assim parecia, era também a mais discreta. Enquanto a amiga buscava os cartazes perdidos entre dezenas de fotografias de artigos nas lojas dos chineses, registados para comparação de preços com produtos similares noutras grandes superfícies, esta servia de polícia sinaleiro na conversação, dizendo quem era quem, quais as funções, encaminhando a conversa para aqui e para acolá com referências a este e àquele. «A Cristina que casou com o Steven, o da padaria, que se despediu por não aturar aquela loura, a Carla, insuportável quando se armava em patroa.» Estes e outros assuntos de semelhante monta as ocupavam, sem folgas e encavalgamentos, sobreposições, um acumulado de cavaqueira interminável.
   A do telemóvel lá encontrou o cartaz de Ferrel, explicando que não ligara os dados por não lhe sobrar saldo. Ao dia 8 do mês de Agosto de 2022. O conjunto musical daquela noite oferecia garantias, tocava «músicas do antigamente, mas não muito velhas.» A terceira, que sobressaía pelo recurso a linguagem escatológica, mostrou-se desconfiada, não estava para ir a Ferrel aturar merdas.
   De que mais falavam estas três? Dos filhos, dos maridos, dos delas e dos outros, de dietas. «A gente em perdendo uns quilitos, a vontade volta», garantia a do cabelo grisalho. «Eu já perdi 5», revelava a mais discreta. «Eu já perdi 8», dizia a escatológica. E eu fiquei a cogitar que vontade seria aquela estimulada por dietas. O que volta com uns quilos a menos? A vontade de comer, certamente. O apetite, o desejo, a paixão, essas coisas. «Tens que experimentar a dieta verde», prosseguiu a grisalha. Não precisaram as outras de perguntar que tipo de dieta seria, ela logo se encarregou de tornar claro o conceito. «Verde longe a pizza, verde longe os refrigerantes, verde longe os enchidos, verde longe os queijos, verde longe a cerveja, verde longe o pão.» Riram muito.
   Por momentos, supus que ficassem por ali. Que dessem uma folga à saliva, uma oportunidade ao silêncio, que as gargalhadas transportassem uma sombra de sossego e calmaria. Nem pensar. Falavam como quem caminha descontraidamente numa rua, tropeça numa pedra, cai sobre alguém que passeia um cão, assusta o cão, é atacado pelo cão, foge para a estrada e acaba atropelado. Os temas sobrepunham-se numa lógica acidental que apenas na cabeça das três faria sentido. Interromperiam o curso aleatório das coisas quando um acidente maior as obrigasse a tal desfecho.
   A minha atenção dividia-se-me entre as páginas de «Cinquenta e Seis», o livro, e as vozes daquelas três, soltando-se amiúde em mergulhos nas profundezas da imaginação. Ocorreu-me a hipótese de um tsunami, o trio de tagarelas a ser conduzido pelas águas sem que nenhuma delas se calasse por um segundo. Vi-as arrastadas por uma maré de destroços, agarradas a troncos de madeira e a fragmentos de borracha, esferovites, indiferentes à catástrofe enquanto davam continuidade a problemáticas pessoais. Ainda ouvi a mais discreta perguntar: «Mas o que está a acontecer?» E a escatológica responder-lhe: «São merdas na cabeça daquele que nos está a ouvir.»
   Nisto de ouvir falar em merdas, lá estavam as três a discutir, agora muito indignadas, a porcaria espalhada pelas ruas onde costumam realizar caminhadas profilácticas ao fim do dia. «É merda de cão por todo o lado. Se não tens cuidado, cagas-te toda», asseverava a escatológica. A mais discreta apontava pessoas na praia com os seus patudos irrequietos, hábito e tendência que não incomodava a de cabelos encaracolados grisalhos. «Desde que apanhem os cocós com saquinhos.» «Ou com a mão», aventou a escatológica. «Credo», comentaram em coro as outras duas. «Ah pois, a minha vizinha apanha a merda do cão dela com a mão.» «Estás a gozar», comentaram em coro as outras duas. «É um podengo francês, o cocó agarra-se que nem sujas os dedos. É do que comem. Só comem coisas boas.»
   Belo remate, antes de se levantarem a caminho das águas. No livro de Esménio, página 33, li eu enquanto as via afastarem-se deixando para trás uma paz descansada: «A vida dos pobres é um mistério; mistério bem maior que a dos ricos, pois a estes não há chão que não os engendre, e não há chão que não os permita de si libertos.»


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