segunda-feira, 5 de setembro de 2022

O PAPEL PARDO DA UTOPIA

 


   Agrada-me pensar a utopia na sua forma primitiva, tal como a conheci, uma ilha imaginária que permite falar de terras aráveis sem estar sujeito ao julgamento de quem nestas terras tudo faz para cercear a imaginação. Será exemplo a utopia? Ou talvez hipótese, possibilidade? Tal como a concebo, é desejo de transformação. Para melhor, convém, porque ele há coisas em que mais vale não mexer. Estão bem como estão. A utopia é a paixão que leva ao acto. Fala-se hoje do fim das utopias, como se tivessem um princípio. Vivemos tempos desapaixonados, vamos todos morrer de sede com piscinas cheias de água. Também se fala do fim da história. Normalmente é assim, quando o tesão esmorece e o homem fica a remoer passados num dantes é que era bom fastidioso e entediante. Enfim, fala-se de tanta coisa. No fundo, pouco haverá de mais concreto do que uma utopia. Se a quiserem transformar em meta, ela deixará de ser utopia. Atingida a meta, o que resta? A utopia não aceita princípios nem fins, exige propósitos, acções, fazeres, concretizações, é o terreno do pensamento que oferece alimento à acção, não é o ideal irrealizável platónico nem os absolutos totalizantes que cristalizam e, por isso mesmo, castram. Tal como a liberdade, a utopia é um ir fazendo, um ir realizando. E é por isso que pouco haverá de mais real, ela é o real anterior ao real, a força por detrás da acção, não é receita, é a fome que impele ao alimento, o esquiço, o projecto.
   “O papel pardo da utopia” (Companhia das Ilhas, Novembro de 2021), livro que Fernando Mora Ramos (n. 1955) resolveu organizar e publicar a pedido de amigos, entre os quais me incluo, colige um conjunto de histórias revelador dessa utopia do concretizar. Um conjunto impagável, diga-se desde já, porque nele a teoria é acção, a experiência é utopia levada à prática, não é concepção sistematizada de ideais ensimesmados e cerrados numa redoma de cristal. São histórias de vida com gente de facto, uns mais conhecidos, como José Afonso ou Mário Barradas, outros, a maioria, que só uma generosa memória íntima poderia trazer à liça, tais como a Menina Alzira, Lenine, o electricista, Tarzan, o técnico de luz, Arsénio Borrucho, o técnico de palco, Amélia, mestra de guarda-roupa, entre tantos outros implicados na ressuscitação de um teatro.
   Estas histórias são, antes de mais, uma declaração de amor ao teatro. O Fernando fala num PT, Partido do Teatro, no qual milita e ao qual se entregou com impressionante dedicação e capacidade de resistência (agora diz-se resiliência, eufemismo ao cuidado de trabalhadores que passaram a ser colaboradores): «Mais uma vez o teatro está em tudo e em todo o lado, é o verdadeiro vírus crítico e emancipador, nenhuma outra escola o é como o teatro, esse que vem da tradição e que a continua opondo-se-lhe sucessivamente mas regressando sempre à matriz grega, língua-mãe» (p. 142). Mas além dessa declaração de amor a uma actividade, estas histórias são também uma reflexão desassombrada e divertida, altamente irónica, inventiva na linguagem posta em prática, sobre os mecanismos culturais numa democracia em construção.
   Concentrados no período do PREC, mas dele se deslocando até à actualidade covídica, numa Évora de então que passa por Coimbra, Guiné, Moçambique, outros lugares de errância, estes textos, sem o pretenderem ou sequer se arrogarem a isso, acabam por ser uma lição de sobrevivência no campo de batalha onde se trava o mais árduo dos combates, um combate pela liberdade, liberdade de pensar e de fazer, não apenas a de opinar ou de argumentar, mas a de um realizar com propósitos descentralizadores definidos, exaltadores de direitos básicos como devem ser os de acesso à cultura, uma cultura que saiba ser “elitista para todos”: «Um país limpo, esse, teria sido, e foi enquanto foi e foi real, o contrário deste em que todos cirandam em torno de corporativismos vários como pernas de um polvo sistémico em autodevoração ógrica (de Ogre)» (p. 49).
   Há um edifício no centro destes relatos, palco da maioria das aventuras aqui partilhadas, algumas verdadeiramente hilariantes. Esse edifício é o Teatro Garcia de Resende, onde o Fernando Mora Ramos foi residente no sentido mais literal que possa ser imaginado. E dele fala com um cuidado, conhecimento e adoração contagiantes. A comédia da vida, acompanhada de algumas tragédias, anda por aqui a par da experiência do actor — modos de morrer em cena, representar de costas, fazer de cego, o famigerado beijo técnico —, numa teia dramática que mete cenários levados pelo vento, suicídios, contracenas com cães, galinhas e mulas, num admirável espírito de obstinação: «O mais certo: desistir. Mas não» (p. 102). É difícil falar deste livro sem lhe sublinhar a perspectiva por vezes romântica, até nostálgica, desse tempo em que estava tudo por fazer e se fazia em condições de precariedade que só a curiosidade do público compensava. E o prazer que se retirava de ver obra feita. Mas mais do que esse olhar, que diz presente como quem levanta o dedo a uma chamada, o que ressalta à vista é a paixão, a força, a teimosia, a obstinação, a energia e o bom humor de histórias como esta:
 
   «Na sala só mulheres. Os homens na canha e na TV — aos berros. Tínhamos de diplomaticamente pedir para baixarem o som. E a conversa. Os tintos marcavam o tom das conversações — e claro, com alguma manha, acabávamos também a beber um copo em nome de uma hora de silêncio por vir. Nem um macho na sala. As mulheres a seguir a história — muitas mulheres de soldados, a desmobilização não era geral, a descolonização estava em marcha. No fim queriam bater na Teresa, que era uma putéfia e não protegera o seu homem verdadeiro — o primeiro namoro — primeiro amor? E cercaram-na. Tivemos que explicar bem que a ficção não era a realidade e que o texto era do século XVI.
   É assim que cada contexto faz o seu texto.»

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