O poeta tem
sobre o cientista uma vantagem: não tem de provar nada daquilo que escreve. Ao
invés, o cientista tem a desvantagem de trabalhar no interior de uma comunidade
que, para afirmar o que quer que seja, precisa da legitimação dada pelo método
e corroborada por investigações independentes. O resultado de uma investigação
não vale por si próprio, como acontece com o poema, mas apenas depois de
validado pelos pares num exame férreo do processo que conduziu a esse resultado
—
pelo menos deveria ser assim, embora não seja difícil apontar aligeiramentos a
este processo de validação interna no sistema da ciência.
Mas, por outro
lado, o poeta está sujeito ao olhar crítico do público, cujo potencial
destrutivo não é negligenciável, coisa que não sucede ao cientista, pois aquilo
que comunica só é, em geral, acessível aos pares, que jogam as mesmas regras e
avaliam segundo a cartilha pela qual também eles são avaliados. Na ciência, as
condições para a produção do enunciado são inúmeras e pesadas (dependem da
validade do método e da destreza em manejá-lo, condições necessárias à produção
de enunciados tidos como verdadeiros) e a avaliação é interpares; na poesia,
são leves e idiossincráticas as condições de produção do enunciado, mas ficam
reféns do juízo de críticos literários que não são, as mais das vezes, eles
próprios escritores e de um público nem sempre preparado para o género
literário que resolve consumir…
O poeta é, pois,
um indisciplinado: a despeito do rigor que pode haver no poema, ele não está
constrangido pela prova daquilo que diz. Há poeta que revêem uma e outra vez o
texto que saiu num momento inspirado, rabiscam e emendam, cortam e acrescentam,
e o poema final é a trigésima revisão do inicial; há outros que deixam praticamente
intacta a primeira forma, como se de um parto se tratasse e a criatura já
viesse toda; outros ainda reescrevem-no, aparecendo em sucessivos livros como
ser que fosse crescendo até à maturidade. E todas estas formas de lidar com o
texto podem mover-se entre si: do mastigador sai um poema súbito em que não
toca mais, do repentista sai um que ele vai várias vezes sujeitando, como
ortopedista que corrigisse a forma até lhe parecer escorreita.
A minha
observação do processo criativo, tanto a que me vem do conhecimento directo de
escritores como da análise do que dizem em entrevistas ou reflexões que
publicam, dá suporte à ideia de que o poeta acredita de que o poeta acredita
que o acto criativo irrompe através de uma epifania (pelo menos do primeiro, ou
às vezes do último verso), enquanto o romancista tem a convicção de que o
romance surge mais do planeamento dos personagens e da acção, do desenho da estrutura
da narrativa e do árduo trabalho de uma escrita continuada. O poeta é a cigarra
e o romancista a formiga?
Luís Fernandes, in “As Lentas Lições do Corpo – Ensaios rápidos
sobre as relações entre o corpo e a mente”, Contraponto, Janeiro de 2021, pp.
192-194.
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