sábado, 4 de março de 2023

A CIGARRA E A FORMIGA

 

   O poeta tem sobre o cientista uma vantagem: não tem de provar nada daquilo que escreve. Ao invés, o cientista tem a desvantagem de trabalhar no interior de uma comunidade que, para afirmar o que quer que seja, precisa da legitimação dada pelo método e corroborada por investigações independentes. O resultado de uma investigação não vale por si próprio, como acontece com o poema, mas apenas depois de validado pelos pares num exame férreo do processo que conduziu a esse resultado — pelo menos deveria ser assim, embora não seja difícil apontar aligeiramentos a este processo de validação interna no sistema da ciência.
   Mas, por outro lado, o poeta está sujeito ao olhar crítico do público, cujo potencial destrutivo não é negligenciável, coisa que não sucede ao cientista, pois aquilo que comunica só é, em geral, acessível aos pares, que jogam as mesmas regras e avaliam segundo a cartilha pela qual também eles são avaliados. Na ciência, as condições para a produção do enunciado são inúmeras e pesadas (dependem da validade do método e da destreza em manejá-lo, condições necessárias à produção de enunciados tidos como verdadeiros) e a avaliação é interpares; na poesia, são leves e idiossincráticas as condições de produção do enunciado, mas ficam reféns do juízo de críticos literários que não são, as mais das vezes, eles próprios escritores e de um público nem sempre preparado para o género literário que resolve consumir…
   O poeta é, pois, um indisciplinado: a despeito do rigor que pode haver no poema, ele não está constrangido pela prova daquilo que diz. Há poeta que revêem uma e outra vez o texto que saiu num momento inspirado, rabiscam e emendam, cortam e acrescentam, e o poema final é a trigésima revisão do inicial; há outros que deixam praticamente intacta a primeira forma, como se de um parto se tratasse e a criatura já viesse toda; outros ainda reescrevem-no, aparecendo em sucessivos livros como ser que fosse crescendo até à maturidade. E todas estas formas de lidar com o texto podem mover-se entre si: do mastigador sai um poema súbito em que não toca mais, do repentista sai um que ele vai várias vezes sujeitando, como ortopedista que corrigisse a forma até lhe parecer escorreita.
   A minha observação do processo criativo, tanto a que me vem do conhecimento directo de escritores como da análise do que dizem em entrevistas ou reflexões que publicam, dá suporte à ideia de que o poeta acredita de que o poeta acredita que o acto criativo irrompe através de uma epifania (pelo menos do primeiro, ou às vezes do último verso), enquanto o romancista tem a convicção de que o romance surge mais do planeamento dos personagens e da acção, do desenho da estrutura da narrativa e do árduo trabalho de uma escrita continuada. O poeta é a cigarra e o romancista a formiga?
 
Luís Fernandes, in “As Lentas Lições do Corpo – Ensaios rápidos sobre as relações entre o corpo e a mente”, Contraponto, Janeiro de 2021, pp. 192-194.

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