Devo ter todas as antologias da poesia
portuguesa publicadas nos últimos 55 anos (estou a pensar a partir das “Líricas
Portuguesas” de Cabral do Nascimento, editada em 1967), em nenhuma delas
encontro um poema de José Afonso (1929-1987). Fiquei ontem a saber que lá
aparece um poema numa antologia de poemas políticos (“Às vezes são precisas
rimas destas – Poesia Política Portuguesa e de Expressão Alemã”, organizada por
João Barrento, Helena Topa, Joachim Sartorius e Fernando J. B. Martinho),
demasiado curto para um poeta que não se circunscreve de todo a essa dimensão
social que as canções popularizaram. Mesmo nas canções José Afonso foi muito
mais do que um poeta político ou de intervenção, expressões que uso não por
concordar com elas mas para simplificar o discurso. Basta pensarmos em canções
tais como “O Avô Cavernoso”, “Era um Redondo Vocábulo” ou “Paz Poeta e Pombas”
para percebermos o que nas suas palavras transcende o engajamento ideológico e
a forma tradicional da canção. Atentas ao mundo, não prescindindo dessa
atenção, essas canções reflectem uma intimidade que vislumbra nas palavras um
modo de libertação muito mais próximo da expressão surrealista do que dos
realismos e naturalismos e outros ismos circunscritíveis da linguagem poética.
O desconcerto do mundo aparece nesta
poesia como já aparecia em Sá de Miranda, sendo até curioso o modo como também
aqui a simplicidade dos mais vulneráveis é o centro a partir do qual se erige
uma poética de testemunho das misérias e denúncia das humilhações. Os poemas de
José Afonso prestam especial atenção a essas figuras, chamando-as para dentro
dos poemas com referência a nomes pessoais, mas jamais se deixam capturar pelo
sentimentalismo bafiento e por uma qualquer emotividade sensacionalista. São o oposto
exacto disso, como nessa “Teresa Torga” que dançando nua na rua serve a
denúncia do oportunismo de um tal fotógrafo António Capela. A sociedade do
espectáculo no Portugal de 76. Se assim já é nas canções, nos chamados poemas
não musicados é-o ainda mais com o aditivo de uma dimensão lírica que parece
oscilar entre o sonho e a realidade, entre a loucura e a normalidade, entre o
delírio e a lucidez, numa liberdade de associações vocabulares que, no fundo,
corresponde à ideia do poeta como representante por excelência de um pensamento
desagrilhoado, desempoeirado, desfeito de preconceitos, ideias feitas, estereótipos,
lugares comuns.
Ao lermos a “Obra Poética” (Relógio D’Água,
Dezembro de 2022) recentemente organizada, prefaciada e anotada por Jorge Abegão,
deparamos com uma poesia dramática no sentido em que nos coloca como
espectadores de um conflito permanente do eu com o mundo, uma poesia em que o
erudito se mistura com o popular através de enxertos de ditos, provérbios e
quadras provenientes da tradição oral. A riqueza da linguagem plurilingue
denota uma geografia diversificada, enraizada numa noção de lusofonia que se
opõe a formas forçadas de aculturação. Este respeito pela diversidade congrega,
não uniformiza.
Por tudo isto parece-me deplorável que o
chamado cânone literário continue a olhar de viés uma obra poética como a de
José Afonso. As pessoas que o conhecem apenas das canções deviam meter os olhos
em poemas como “O Triângulo e a Limalha” (1959) ou “De que lado se faz noite?”
(1960) ou “Olhai o nardo e a cicuta” ou “Fui ao enterro de um leão” ou “Por um
momento me fui habituando” ou neste “És Livre”: «És livre / Vais ter assunto
para uma efeméride / Como se babam / Como se apascentam / os olhos das
doninhas? Alguém tosse / Alguém trespassa as varas da loucura.»
Elfriede Engelmayer sugeriu em tempos uma
organização da poesia de José Afonso em três fases: a edição de “Cantares” em
1966, os poemas da prisão (cerca de 20, escritos em Caxias no ano de 1973) e os
poemas dos anos 80, especialmente marcados pelo combate travado com a morte (os
primeiros sintomas da doença que o vitimou datam de 1982). É uma forma possível
de organização de uma poética dispersa que tem vivido na sombra da popularidade
do cantor, conquanto aceitemos que em toda a poesia de José Afonso, musicada ou
não, o que mais sobressai é a edificação de um lugar de encontro entre o
diverso, um lugar plural, de liberdade, antielitista, e por isso mesmo tingido
de contrastes, paradoxos, até absurdos nesse sentido existencialista e
humanista que José Afonso bem conhecia (a sua tese de licenciatura foi sobre
Sartre). Pelo menos é isso que eu encontro num poema como aquele que a seguir
se transcreve:
POR UM MOMENTO ME FUI HABITUANDO
Por um momento me fui habituando
Ou quase me pareceu habituar-me
Ao peso duma estátua jacente com turbante
Sabia que não era coisa que prestasse
fecho que corresse como se numa sala entrasse
Eu deito-me sempre confiante
à espera do voo dum mosquito
ou doutra metamorfose amável e ruidosa
Capaz de despertar em torno um ruído morno
Mas sei que a partida não chega nem o sinal
nem um dedo se move nem um mocho cantante
Não vem o silêncio sentar-se à minha mesa
A vizinha dorme o aparelho medita
tu habitualmente só, escreves à família
o candeeiro, as horas de Maria
O país conhece a autópsia do dia
Amanhã o ruído das crianças interrompe-me o sono
Ausenta-se a firmeza do facto
Sigo-lhe a cadência, a lavra costumeira
era ali o apeadeiro debruçado sobre o mundo
Uma rosa garrida no canto da janela
Eu queria romper este encanto canto
encher de pintassilgos a estrada
comover-me de novo ao passar da ribeirinha
Um amigo telefona-me. Convida-me à urgência
de chegar a compasso ao centro do ruído
Hoje não saio. Sinto-me perdido.
Ou quase me pareceu habituar-me
Ao peso duma estátua jacente com turbante
Sabia que não era coisa que prestasse
fecho que corresse como se numa sala entrasse
Eu deito-me sempre confiante
à espera do voo dum mosquito
ou doutra metamorfose amável e ruidosa
Capaz de despertar em torno um ruído morno
Mas sei que a partida não chega nem o sinal
nem um dedo se move nem um mocho cantante
Não vem o silêncio sentar-se à minha mesa
A vizinha dorme o aparelho medita
tu habitualmente só, escreves à família
o candeeiro, as horas de Maria
O país conhece a autópsia do dia
Amanhã o ruído das crianças interrompe-me o sono
Ausenta-se a firmeza do facto
Sigo-lhe a cadência, a lavra costumeira
era ali o apeadeiro debruçado sobre o mundo
Uma rosa garrida no canto da janela
Eu queria romper este encanto canto
encher de pintassilgos a estrada
comover-me de novo ao passar da ribeirinha
Um amigo telefona-me. Convida-me à urgência
de chegar a compasso ao centro do ruído
2 comentários:
Aqui está, sem hesitação académica nem laivos de proposta de leitura refém de premissas estáticas, o verdadeiro coração que mora na poesia de José Afonso.
Por ser tão amplo o seu saber, e tão grandiosa a sua capacidade de o transpor para a música(sem sombra de tratamento diferenciado), J.Afonso aparece neste texto como um construtor sábio de uma obra que poderia muito bem ocupar um lugar de honra entre as melhores da cultura portuguesa.
Precisamente, este texto liga como coisa inevitável, os vários saberes presentes em Zeca Afonso, o que confere um estatuto muito acima das vulgaridades com que se qualifica uma vida sem paralelo. Obrigada e Parabéns!
Obrigado Armandina. Abraço.
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