quarta-feira, 27 de agosto de 2025

INTEGRADO MARGINAL

 


Após escalas em São Tomé e Luanda, o Sofala acostou no Lobito em meados de agosto. A viagem, que até aí decorrera sem sobressaltos, sofreu uma mudança, pelo menos aos olhos do ingénuo Cardoso Pires, que este nunca mais esqueceria. A paragem servia para descarregar mercadoria e para os marinheiros se aliviarem da tensão acumulada em várias semanas de alto-mar com meninas negras de 13 e 14 anos, num ritual que tinha tanto de surreal, com uma cerimónia inventada que simulava casamentos entre os homens e as raparigas, como de repugnante. 
   Cardoso Pires, ainda o catequista da Perseverança e rapaz que só conhecia as delícias do amor consentido, assistiu a tudo com perplexidade. Logo à chegada, os homens tinham à sua espera, na escada de portaló, uma mulher negra, chamada Catrina, de cachimbo na boca, com a missão de organizar o negócio. Alguns membros da tripulação entraram em táxis que os levaram para umas cubatas nos arredores do Lobito para celebrarem os ditos casamentos com nomes falsos, pagando uma determinada quantia em jeito de dote que lhes dava o direito de desflorar as meninas, «tirar-lhes o cabaço». Cardoso Pires ficou no navio, mas à noite, quando os colegas regressaram, ficou a saber de todos os pormenores pela boca dos oficiais: «De galões e diploma da Escola Náutica, contavam o assalto às virgens com uma ironia selvagem até ao mais íntimo detalhe.»

Bruno Vieira Amaral, in Integrado Marginal, biografia de José Cardoso Pires, Contraponto, Junho de 2021, pp. 58-59.

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