“O Que Vemos Quando Lemos” é o título de um belo livro de Peter Mendelsund. O esforço do autor nessa obra é, no contexto do seu trabalho de designer gráfico na área da edição, explicar-nos como chega a algumas soluções através da leitura de um livro, do encontro com as personagens do livro através da leitura. Ele podia interrogar-se sobre como é Helen? Qual a cor dos olhos? E Liam, é baixo ou alto? E Danny, gordo ou magro. No teatro, estes aspectos estão ponderados, desde logo, na escolha dos actores, a qual pode ser feita mediante vários critérios mas deverá ser sempre fundamentada em elementos básicos fornecidos pela leitura. A idade, por exemplo, é determinante.
Em “Órfãos” há algumas indicações que são fornecidas e não podemos perder de vista, nomeadamente sobre o estatuto social das personagens. Nada é ostensivo, mas muito pode ser deduzido. Vivem num bairro problemático? Logo, não têm dinheiro para viver num bairro que não seja problemático. Estão numa zona urbana. Que bairros não são problemáticos hoje em dia nas zonas urbanas? Que bairros não eram problemáticos em 2009, quando a peça estreou, nas zonas urbanas? O que se me afigura mais credível é estarmos na presença de um casal, Danny e Helen, remediado, pura classe média. Ambos trabalham, têm um filho, podem vir a ter um segundo. Não é para qualquer um. Liam será o elemento que foge ao padrão, ele tem a chave da casa (pormenor relevante: tem mesmo de ter uma chave), mas não é necessariamente da casa. Ele é da família, mas como alguém que foi acolhido simplesmente por ser irmão de Helen. Os laços familiares entre estes três são altamente voláteis. Pensando mais concretamente nos figurinos, algumas questões práticas que se impõem:
1. O que significa “vestidos com elegância” no casal Helen e Danny? Um vestido no caso dela, certamente, mas que fuja aos clichés vermelhão ou preto. Qualquer coisa em tons térreos que jogue com o papel de parede, um vestido elegante que possa ser usado num jantar romântico na própria casa, esse ar arranjadinho que as pessoas em busca de uma vida normal oferecem a momentos excepcionais que confiram uma suposta normalidade da vida. Sapatos? Nada de saltos altos, fica foleiro dentro de casa. Talvez umas sabrinas. Há uma mudança em Helen, no entanto, da cena um para a quatro. Na quatro é sugerido que estava deitada na cama. Deverá apresentar-se mais confortável, talvez num pijama, o tipo de roupa que usamos para dormir, uns chinelos de quarto. Uma hipótese também a marcar a passagem do tempo, o resfriamento do jantar romântico interrompido, o frio que Liam traz para dentro de casa: a certa altura vestir um casaco de malha. Porventura da cena um para a dois possa já ter colocado o casaco e mudado de calçado em busca de um aconchego no corpo que a chegada do irmão dissipou.
2. A elegância em Danny é diferente. É ele quem cozinha, vem da cozinha com a comida para a mesa. Talvez uma camisa em mangas arregaçadas. Agrada-me essa ideia, revejo-me no papel em noite de jantar romântico caseiro ou ano novo a dois. Calças mais claras, camisa escura. Um azulão será bem-vindo, sabemos que gosta da t-shirt azul, poderá ser essa a sua cor. Sapatos de tipo mocassins ou algo clássico que combine, porém, com a calça clara (bege?) e a camisa escura. Precisa de um casaco na cena quatro, casaco de alguém que anda na rua à chuva, casaco grosso que o proteja do frio. E de uma balaclava.
3. Liam é a rua, é a rua a entrar dentro de casa, é o bairro a invadir a sala de jantar. Calças de ganga pretas justas, ténis, a t-shirt manchada de sangue - branca lisa ou com alguma coisa estampada, foi-lhe oferecida pela Jeanie, pode ter uma marca distintiva sob o sangue que deverá ser o mais real possível, nada de pinturas elaboradas, manchas de sangue real, salpicos. Por cima da t-shirt, um casaco de algodão, tipo desportivo, com capuz. Ter em atenção que ele vem da rua, não podia ter sido denunciado pelas manchas de sangue, só fica exposto ao entrar em casa. Precisamos ainda da t-shirt azul que Danny não quer que Helen lhe dê e da verde, a t-shirt suada com a águia-estrela estampada. Um verde-tropa seria ideal. E não esquecer a chave, o telemóvel com o toque foleiro. Nada de cabelos rapados. Liam não é skinhead, ainda que pudesse sê-lo.
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