Talvez esta história comece em Shackleton, no orfanato a que Liam, ansioso, se refere no início da terceira parte para lembrar um passado que a irmã se encarrega prontamente de desmentir. Apesar das três personagens em cena, “Órfãos”, de Dennis Kelly, concentra na sala onde decorre a acção um número impressionante de gente que, a despeito da ausência física, está claramente presente nas memórias e na consciência das personagens. Desde logo Shane, filho de Helen e Danny, que surge ensonado apenas na quarta parte. Não é despiciendo que apareça sonolento, sem proferir uma única palavra, pois esse estado crepuscular confere-lhe uma dimensão fantasmagórica semelhante à daqueles que vivem apenas nas memórias de Helen e Liam ou a terceiros que vêm à baila, por assim dizer, enquanto marcos de vidas cujos traços vão sendo traçados também pelo modo como se referem aos outros. Shane tem cinco anos, sabemo-lo através de Helen, e foi deixado ao cuidado da mãe de Danny, uma senhora com excelente sentido de humor, diz Liam. Danny tem, portanto, uma mãe que cuida do neto, ao contrário de Helen e Liam que terão perdido cedo os pais e, por isso, foram educados num orfanato. Isto marca uma diferença substancial entre os três, o passado familiar de Danny é, aparentemente, menos volátil do que o de Helem e Liam. Desses tempos remotos, Liam recorda o único miúdo da escola que falava com ele, Brian Hargreaves, o puto cigano que comia paus e que terá sido espancado pelo próprio Liam depois de, supostamente, contar mentiras acerca de Helen. Liam lembra também Hilson, «o conas do Hilson», director do orfanato que pretendia separar Helen de Liam. Há ainda Jeanie, a rapariga que Liam visita no cemitério, a mesma que lhe ofereceu pelo Natal a t-shirt agora ensanguentada. Tanto Shane como Jeanie são referências que conferem humanidade a Liam, resgatando-o desse lugar monstruoso em que nos sentimos tentados a arrumar quem pratica acções cruéis, bárbaras, desumanas. Liam é humano, demasiado humano, não é um monstro, e talvez Kelly pretenda lembra-nos isso mesmo ao conferir-lhe uma dimensão sensível, tal como Nietzsche nos lembrou, em “Humano, Demasiado Humano”, a relevância das «circunstâncias motivadoras» no julgamento que fazemos dos homens. Ninguém é o último culpado por aquilo em que se torna, há os educadores, os pais, as companhias, cada homem é também produto do contexto em que se desenvolve. Neste sentido, o último monólogo de Liam, na quarta parte, quando se dirige a Danny para lhe dizer algo como “eu só queria que tivesses passado por aquilo que eu passei”, ou, dito de outra forma, “try walking in my shoes”, pode inspirar várias leituras, sendo que nenhuma delas, pelo esforço de compreensão que exija da personagem, será minimamente desculpabilizadora dos actos perpetrados que estão no centro da acção. Será de ter em atenção, por isso mesmo, outra presença-ausente: Ian, o amigo de Liam que colecciona todo o tipo de cenas nazis. Helen, que tem uma atitude protectora do irmão, refere-se a Ian sempre negativamente, tal como uma mãe que tentasse demover um filho de andar com más companhias. Enquanto irmã, Helen é também a mãe que faltou a Liam e Liam, na sua forma desastrosa de actuar, tenta ser o protector, a figura paterna, de Helen, Danny e Shane num bairro problemático em que a irmã é insultada na rua e o cunhado vítima de agressões. Mais do que a orfandade familiar aludida no título, há que contemplar igualmente a orfandade social dos cidadãos. A grande ironia está em que seja Liam a lembrá-lo quando, a certa altura, diz: «o estado abandonou-nos.»
terça-feira, 30 de setembro de 2025
PENSAR AS PERSONAGENS
Talvez esta história comece em Shackleton, no orfanato a que Liam, ansioso, se refere no início da terceira parte para lembrar um passado que a irmã se encarrega prontamente de desmentir. Apesar das três personagens em cena, “Órfãos”, de Dennis Kelly, concentra na sala onde decorre a acção um número impressionante de gente que, a despeito da ausência física, está claramente presente nas memórias e na consciência das personagens. Desde logo Shane, filho de Helen e Danny, que surge ensonado apenas na quarta parte. Não é despiciendo que apareça sonolento, sem proferir uma única palavra, pois esse estado crepuscular confere-lhe uma dimensão fantasmagórica semelhante à daqueles que vivem apenas nas memórias de Helen e Liam ou a terceiros que vêm à baila, por assim dizer, enquanto marcos de vidas cujos traços vão sendo traçados também pelo modo como se referem aos outros. Shane tem cinco anos, sabemo-lo através de Helen, e foi deixado ao cuidado da mãe de Danny, uma senhora com excelente sentido de humor, diz Liam. Danny tem, portanto, uma mãe que cuida do neto, ao contrário de Helen e Liam que terão perdido cedo os pais e, por isso, foram educados num orfanato. Isto marca uma diferença substancial entre os três, o passado familiar de Danny é, aparentemente, menos volátil do que o de Helem e Liam. Desses tempos remotos, Liam recorda o único miúdo da escola que falava com ele, Brian Hargreaves, o puto cigano que comia paus e que terá sido espancado pelo próprio Liam depois de, supostamente, contar mentiras acerca de Helen. Liam lembra também Hilson, «o conas do Hilson», director do orfanato que pretendia separar Helen de Liam. Há ainda Jeanie, a rapariga que Liam visita no cemitério, a mesma que lhe ofereceu pelo Natal a t-shirt agora ensanguentada. Tanto Shane como Jeanie são referências que conferem humanidade a Liam, resgatando-o desse lugar monstruoso em que nos sentimos tentados a arrumar quem pratica acções cruéis, bárbaras, desumanas. Liam é humano, demasiado humano, não é um monstro, e talvez Kelly pretenda lembra-nos isso mesmo ao conferir-lhe uma dimensão sensível, tal como Nietzsche nos lembrou, em “Humano, Demasiado Humano”, a relevância das «circunstâncias motivadoras» no julgamento que fazemos dos homens. Ninguém é o último culpado por aquilo em que se torna, há os educadores, os pais, as companhias, cada homem é também produto do contexto em que se desenvolve. Neste sentido, o último monólogo de Liam, na quarta parte, quando se dirige a Danny para lhe dizer algo como “eu só queria que tivesses passado por aquilo que eu passei”, ou, dito de outra forma, “try walking in my shoes”, pode inspirar várias leituras, sendo que nenhuma delas, pelo esforço de compreensão que exija da personagem, será minimamente desculpabilizadora dos actos perpetrados que estão no centro da acção. Será de ter em atenção, por isso mesmo, outra presença-ausente: Ian, o amigo de Liam que colecciona todo o tipo de cenas nazis. Helen, que tem uma atitude protectora do irmão, refere-se a Ian sempre negativamente, tal como uma mãe que tentasse demover um filho de andar com más companhias. Enquanto irmã, Helen é também a mãe que faltou a Liam e Liam, na sua forma desastrosa de actuar, tenta ser o protector, a figura paterna, de Helen, Danny e Shane num bairro problemático em que a irmã é insultada na rua e o cunhado vítima de agressões. Mais do que a orfandade familiar aludida no título, há que contemplar igualmente a orfandade social dos cidadãos. A grande ironia está em que seja Liam a lembrá-lo quando, a certa altura, diz: «o estado abandonou-nos.»
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1 comentário:
Liam mas já não lêem
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