sexta-feira, 3 de outubro de 2025

A CANÇÃO DOS VELHOS ESPOSOS

 


Às vezes lá acontece lermos um livro que nos abre as portadas da emoção e areja o espírito, fazendo-nos sentir mais humanos do que verdadeiramente somos. O ambiente social embrutece-nos, usurpa-nos humanidade, força-nos uma paciência que rapidamente se desfaz em cansaço e saturação. O espantoso é como não é preciso muito para que uma obra nos toque indelevelmente, a ponto de escancararmos a alma e derrearmos os escudos com que nos protegemos do ruído exterior. Quando digo que não é preciso muito não estou a menosprezar a grandeza dessa brevidade que torna mais evidente, no seu tracejado puro, nos contornos bem delineados, a intenção de um trabalho artístico, manifeste-se ele a partir da linguagem e segundo a disciplina que for. É assim no cinema, na pintura, na dança, no teatro, na música, na literatura. Fazer o elogio da simplicidade e da brevidade não implica também nenhuma guerra contra a complexidade dos grandes edifícios, simplesmente releva o poder de uma clareza que tantas vezes se ausenta nestes tempos turvos sob fragores excessivos e imagens desbaratadas de sentido, rendidas ao fogo-de-artifício dos efeitos e do estilo com que se seduzem mentes permeáveis nas sociedades de consumo. O conto do francês Pierre Loti (1850-1923), pseudónimo de Louis Marie-Julien Viaud, que a Companhia das Ilhas acaba de publicar com tradução de Miguel Martins é um desses exemplos que oferecem crédito à expressão “menos é mais”. Oficial da marinha, Loti andou pelo mundo anotando impressões e experiências. A sua obra é pois resultado do cruzamento presencial com várias culturas, fosse em Istambul, na Polinésia, no Senegal, Vietname, Marrocos, ou noutras por onde andou colhendo informação para uma vasta obra. “A Canção dos Velhos Esposos” transporta-nos para o Japão, objecto da novela “Madame Chrysanthème” (1887), segundo se diz percursora da ópera “Madama Butterfly” de Puccini (libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa). “La Chanson des vieux époux” surgiu originalmente na colectânea “Le Livre de la pitié et de la mort” (1891), apresentada algures como estranhamente confessional e de reminiscências sentimentais. Conta a história de um casal de velhos mendigos, marido e mulher, ele cego, ela paralítica. Vagueiam pelas ruas de mão estendida, pedindo sem incomodar, com ele a transportar a mulher numa pequena caixa com rodinhas. A voz da mulher são os olhos do cego, ela orienta-o na direcção das festas religiosas celebradas nos templos. Perante tamanha miséria, o narrador interroga-se: «Ainda teriam alegrias, pequenas réstias de esperança? Ainda teriam, sequer, pensamentos? E porque é que teimavam em viver quando a terra estava mesmo ali, pronta para recebê-los, para acabar de decompô-los sem que tivessem de sofrer mais?...» (p. 10). São perguntas recorrentes que fazemos a nós próprios e para as quais não obtemos resposta, pois talvez a teimosia de viver neste mundo hostil se alimente de inúmeras migalhas aqui e acolá respigadas. Como, por exemplo, a recompensa desta leitura. Ou o amor que nos liga uns aos outros. A data de publicação é Agosto de 2025. Cheguem-lhe.

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