terça-feira, 17 de agosto de 2010

A PAIXÃO DA FOME, A FOME DA PAIXÃO

Não me recordo de alguma vez ter lido um romance tão bom que me surpreendesse tão pouco. É que não esperava mais nada de Fome, de Knut Hamsun (1859-1952), senão aquilo que me ofereceu: uma inquietante alegoria da paixão. O autor nasceu em Lom, na região central da Noruega. Foi o quarto filho do casal Pedersen. Tinha Knut Hamsun três anos quando a família se mudou para Hamarøy, ficando o pai a tomar conta de uma propriedade de Hans Olsen, seu cunhado. Impedido de trabalhar, Olsen reclamou junto dos Pedersen o dinheiro que lhes havia emprestado. Para que os pais pudessem pagar a dívida, Hamsun começou a trabalhar. Aos livros ia buscar alguma companhia. Em 1873, regressou a Lom e arranjou emprego numa loja. Caído de amores pela filha do dono da loja, teve de zarpar novamente para Hamarøy. Aí teve várias ocupações até rumar para outras paragens levando uma vida de mendigo. Os primeiros escritos apareceram aos 18 anos. 1878 foi o ano da chegada a Kristiania (actual Oslo), cenário escolhido para a narrativa que o consagrou: Fome (1890).

Knut Hamsun levou uma vida miserável em Kristiania, interrompida a espaços por algumas romagens aos EUA. Não custa acreditar que a sua experiência pessoal serviu de base à vida errante do jovem escritor caricaturado em Fome. Desta personagem, pouco mais sabemos que um nome fictício: Andreas Tangen. Vagueia faminto pela cidade, procura diversos empregos que lhe são sistematicamente recusados, perde-se em «invenções bizarras, caprichos, fantasias» que lhe sustentam artigos, publicados ou rejeitados nos periódicos locais, sem efeito que se note. Apesar da sua evidente indigência material e de um ameaçador estado de confusão mental que lhe vai tomando conta dos pensamentos e das acções, o jovem vagabundo mantém um optimismo e um sentido da dignidade que, muitas vezes, parece confundir-se com aquele tipo de orgulho que mantém verticais as pessoas caídas em desgraça. Os seus utensílios de escrita são uma réstia de esperança que o salvaguardam da penhora absoluta, são aquilo que o liga à sua mais vigorosa paixão.

Desorientado, prossegue caminho entre “mentiras úteis”, acessos de inspiração, «alucinações e sonhos loucos». A fome é tanta que o corpo cria intolerância à comida. Vomita tudo o que ingere, em sentido literal e figurado. Que fez ele para merecer tal desgraça? Ou melhor, o que terá deixado de fazer para que a desgraça o tivesse capturado? Às tantas, toda a situação nos parece absurda. Ninguém sobreviveria a uma fome daquelas. No entanto, esta fome não deve ser reduzida a uma dimensão meramente física. No prefácio, Paul Auster diz que «a fome não é uma metáfora, é o verdadeiro fulcro do problema». Tratar-se-á, então, de uma parábola sobre o artista que perdeu o controlo sobre si mesmo? Ao longo do romance são diversos os momentos em que a fome se assemelha a uma espécie de paixão. O jovem escritor está esfomeado, mas pouco parece querer fazer para matar essa fome. É como se se alimentasse da fome. A sua fome tornou-se uma razão de ser, é uma espécie de estado ontológico.

Andreas Tangen, chamemos-lhe assim, sente «o bem-estar do isolamento», tal como «aquela sensação do peito a roer»: «A fome roía-me insuportavelmente e não me deixava sossegar. Uma vez ou outra, engolia saliva para me alimentar um pouco e achei que isso resultava» (p. 91). No entanto, quando se lhe torna possível superar essa fome, ele ou rejeita a possibilidade ou simplesmente vomita. Quando sentia fome, os seus sentidos fundiam-se uns com os outros. Estas mesmas sensações serão como que repetidas após o estremecimento de um encontro com a paixão: «No largo do Sporting, encontrei uma rapariga que cravou os olhos em mim, quando ia a passar por ela» (p. 145). Fantasia? Loucura? A verdade é que por duas vezes ele nos diz do prazer que sente: uma, quando se liberta de algumas moedas para voltar a ser pelintra; outra, quando o coração lhe bate violentamente no peito perante a presença da amada. E quando diz a verdade, é isto que ele diz:

«Estive ali de pé, a tagarelar, tendo a sensação embaraçosa de que estava a aborrecê-la, de que nenhuma das minhas palavras atingia o alvo, no entanto, não me calei: Na verdade, podia ter-se uma natureza sensível sem que, por isso, se fosse louco; havia os que viviam quase de nada e que morriam de uma simples palavra. E deixei-a perceber que eu tinha esse tipo de natureza. A verdade era que a minha pobreza me tinha aguçado determinadas características, até um grau em que, infelizmente, também me causavam uma certa quantidade de situações desagradáveis, sim, garanto-lhe, situações desagradáveis. Mas, por outro lado, isso também tinha as suas vantagens, ajudava-me noutras situações. O inteligente pobre é muito melhor observador do que o inteligente rico. O pobre mede cada passo que dá, escuta atentamente cada palavra que ouve às pessoas que encontra. Cada passo que ele dá constitui para o seu cérebro e para a sua sensibilidade uma tarefa, um trabalho. Ele tem o ouvido apurado e é sensível, tem experiência, tem marcas de queimaduras na alma…» (p. 202)

Ora, a questão que cabe fazer é se temos aqui, ou não, uma teoria da criação literária? Será a experiência o alimento de que carece essa fome de fazer a que chamamos poesia? Se sim, que poesia podemos esperar das vidas burguesas e desapaixonadas que caracterizam hoje a maioria dos literatos? Terão fome? Estarão apaixonados? Ou será que se limitam a fantasiar uma condição social que lhes trará a ilusão e a expectativa de um anonimato abreviado?


Knut Hamsun, Fome, prefácio de Paul Auster, trad. Liliete Martins, Cavalo de Ferro, Outubro de 2008.

2 comentários:

fallorca disse...

Obrigadinho, fiquei a perceber, acabado o «Verão», acabado Coetzee ;)

hmbf disse...

Esse Verão está na lista de espera. Abraço.