Knut Hamsun levou uma vida miserável em Kristiania, interrompida a espaços por algumas romagens aos EUA. Não custa acreditar que a sua experiência pessoal serviu de base à vida errante do jovem escritor caricaturado em Fome. Desta personagem, pouco mais sabemos que um nome fictício: Andreas Tangen. Vagueia faminto pela cidade, procura diversos empregos que lhe são sistematicamente recusados, perde-se em «invenções bizarras, caprichos, fantasias» que lhe sustentam artigos, publicados ou rejeitados nos periódicos locais, sem efeito que se note. Apesar da sua evidente indigência material e de um ameaçador estado de confusão mental que lhe vai tomando conta dos pensamentos e das acções, o jovem vagabundo mantém um optimismo e um sentido da dignidade que, muitas vezes, parece confundir-se com aquele tipo de orgulho que mantém verticais as pessoas caídas em desgraça. Os seus utensílios de escrita são uma réstia de esperança que o salvaguardam da penhora absoluta, são aquilo que o liga à sua mais vigorosa paixão.
Desorientado, prossegue caminho entre “mentiras úteis”, acessos de inspiração, «alucinações e sonhos loucos». A fome é tanta que o corpo cria intolerância à comida. Vomita tudo o que ingere, em sentido literal e figurado. Que fez ele para merecer tal desgraça? Ou melhor, o que terá deixado de fazer para que a desgraça o tivesse capturado? Às tantas, toda a situação nos parece absurda. Ninguém sobreviveria a uma fome daquelas. No entanto, esta fome não deve ser reduzida a uma dimensão meramente física. No prefácio, Paul Auster diz que «a fome não é uma metáfora, é o verdadeiro fulcro do problema». Tratar-se-á, então, de uma parábola sobre o artista que perdeu o controlo sobre si mesmo? Ao longo do romance são diversos os momentos em que a fome se assemelha a uma espécie de paixão. O jovem escritor está esfomeado, mas pouco parece querer fazer para matar essa fome. É como se se alimentasse da fome. A sua fome tornou-se uma razão de ser, é uma espécie de estado ontológico.
Andreas Tangen, chamemos-lhe assim, sente «o bem-estar do isolamento», tal como «aquela sensação do peito a roer»: «A fome roía-me insuportavelmente e não me deixava sossegar. Uma vez ou outra, engolia saliva para me alimentar um pouco e achei que isso resultava» (p. 91). No entanto, quando se lhe torna possível superar essa fome, ele ou rejeita a possibilidade ou simplesmente vomita. Quando sentia fome, os seus sentidos fundiam-se uns com os outros. Estas mesmas sensações serão como que repetidas após o estremecimento de um encontro com a paixão: «No largo do Sporting, encontrei uma rapariga que cravou os olhos em mim, quando ia a passar por ela» (p. 145). Fantasia? Loucura? A verdade é que por duas vezes ele nos diz do prazer que sente: uma, quando se liberta de algumas moedas para voltar a ser pelintra; outra, quando o coração lhe bate violentamente no peito perante a presença da amada. E quando diz a verdade, é isto que ele diz:
«Estive ali de pé, a tagarelar, tendo a sensação embaraçosa de que estava a aborrecê-la, de que nenhuma das minhas palavras atingia o alvo, no entanto, não me calei: Na verdade, podia ter-se uma natureza sensível sem que, por isso, se fosse louco; havia os que viviam quase de nada e que morriam de uma simples palavra. E deixei-a perceber que eu tinha esse tipo de natureza. A verdade era que a minha pobreza me tinha aguçado determinadas características, até um grau em que, infelizmente, também me causavam uma certa quantidade de situações desagradáveis, sim, garanto-lhe, situações desagradáveis. Mas, por outro lado, isso também tinha as suas vantagens, ajudava-me noutras situações. O inteligente pobre é muito melhor observador do que o inteligente rico. O pobre mede cada passo que dá, escuta atentamente cada palavra que ouve às pessoas que encontra. Cada passo que ele dá constitui para o seu cérebro e para a sua sensibilidade uma tarefa, um trabalho. Ele tem o ouvido apurado e é sensível, tem experiência, tem marcas de queimaduras na alma…» (p. 202)
Ora, a questão que cabe fazer é se temos aqui, ou não, uma teoria da criação literária? Será a experiência o alimento de que carece essa fome de fazer a que chamamos poesia? Se sim, que poesia podemos esperar das vidas burguesas e desapaixonadas que caracterizam hoje a maioria dos literatos? Terão fome? Estarão apaixonados? Ou será que se limitam a fantasiar uma condição social que lhes trará a ilusão e a expectativa de um anonimato abreviado?
Knut Hamsun, Fome, prefácio de Paul Auster, trad. Liliete Martins, Cavalo de Ferro, Outubro de 2008.
2 comentários:
Obrigadinho, fiquei a perceber, acabado o «Verão», acabado Coetzee ;)
Esse Verão está na lista de espera. Abraço.
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