domingo, 26 de janeiro de 2014

JÁ NÃO HÁ PACHORRA PARA GELATINA DE MORANGO

Periodicamente, o país acorda para o mundo das praxes. Recorre ao tema motivado por um jovem assassinado com uma cronhada na cabeça, uma jovem mergulhada num monte de merda, uma outra violada a contragosto (no mundo das praxes há delas que gostam) ou, mais recentemente, seis pseudo-doutores engolidos pela gula das marés. A malta das praxes tem as suas hierarquias, veste-se a rigor, promove sociedades secretas com rituais mais ou menos obscuros, venera fardas e hinos, sob o olhar cúmplice e apaixonado de pais e professores orgulhosos. Têm as suas bandeiras, os seus símbolos. A academia aceita, desmistifica, moraliza eventuais atentados à dignidade humana, desinflaciona a dimensão grotesca e bruta da humilhação iniciática. Afinal, só é praxado quem quer e quem quer gosta, voluntaria-se se for preciso, está disposto a tudo para poder sentir-se parte integrante do grupo que há-de promovê-lo à condição de senhor perante futuros escravos. Assim se cresce e se faz homem e mulher quem nasça no mundo civilizado. É a tradição, palavra há muito utilizada para desculpabilizar e absolver todo o tido de atrocidades. O curioso disto está em constatar certo etnocentrismo encapuçado. As mesmas pessoas que vemos falar das praxes com orgulho ou simples desdramatização são capazes de apontar com a mais estúpida insensatez o fanatismo religioso islâmico, os rituais incivilizados da raça cigana, a violência genética dos pretos, numa prática do preconceito e do estereótipo cultural há muito enraizada na assoberbada nossa cultura. Ironia das ironias, o debate actual sobre as praxes acontece na mesma altura em que investigadores se manifestam contra o desinvestimento do governo na ciência. Anunciados cortes nas bolsas de estudo, que podemos fazer acompanhar de outros tantos cortes na cultura e no ensino, são a cereja no topo do bolo deste retrocesso civilizacional. Ou então não há retrocesso nenhum. Andávamos todos iludidos e o país continua a ser o que sempre foi desde a sua origem: um caldeirão de equívocos. Foi um equívoco que nos tornou país, foi um equívoco que nos tornou messiânicos, foi um equívoco que nos levou às américas, foi por equívoco que nos julgámos ricos, equivocadamente aguentámos 50 anos de ditadura e vai fazer 40 anos que vivemos debaixo de um equívoco democrático. O mal que levámos ao mundo, nós e outros como nós, talvez seja a raiz do problema. Repare-se como glorificamos as chamadas descobertas sem sentirmos vergonha ou o mínimo peso na consciência pelos milhões de índios que condenámos à morte e outros tantos pretos que arrancámos das suas terras para os tratarmos como gado. E dos tempos coloniais continuamos a falar como quem fala de gelatina de morango. A História não nos pesa na consciência porque: 1. É passado; 2. O que lá vai lá vai; 3. Já não me lembro. Esta falta de consciência história é um mal tremendo, ilude virtudes que não temos e impede, atrasa, retarda o mais importante dos progressos. Um progresso civilizacional que tornasse a corrupção inaceitável e intolerável, ao contrário da prática generalizada que se faz da mesma desde o mais banal “chico esperto” aos altos cargos do poder; um progresso civilizacional que fosse implacável para com práticas desumanas, venham elas de claques, gangues ou associações académicas; um progresso civilizacional que não considerasse desperdício o investimento na ciência, na cultura, na educação, na saúde, pelo menos com a mesma alegria com que estupidamente aplaudimos a construção desnecessária de estádios de futebol ou exposições internacionais ou auto-estradas inúteis; um progresso civilizacional que arrancasse os cidadãos da modorra e da indigência social em que vivem, extasiados com os feitos dos seus heróis futebolísticos e estupidificados com lixo televisivo, para os elevar um pouco acima do ilusionismo que os endromina: exigindo uma democracia de facto, contra as mentiras e a hipocrisia que alimentam o motor da política e engordam 85 patrões beneméritos à custa da exploração de 7 biliões de nano-pequenos-médios-escravos agradecidos. Longe disso, indignamo-nos periodicamente com as praxes como se não fôssemos todos, mas mesmo todos, responsáveis pelo estado em que estamos, tão brandos que continuamos a ser com os facínoras que nos vão açucarando a existência à base de gelatina de morango.

2 comentários:

Cuca, a Pirata disse...

Pois, é isso mesmo.

marta disse...

Pois, e sentamo-nos no sofá a ver os reality shows e as máquinas da verdade