Periodicamente, o país acorda para o mundo das praxes. Recorre
ao tema motivado por um jovem assassinado com uma cronhada na cabeça, uma jovem
mergulhada num monte de merda, uma outra violada a contragosto (no mundo das
praxes há delas que gostam) ou, mais recentemente, seis pseudo-doutores engolidos
pela gula das marés. A malta das praxes tem as suas hierarquias, veste-se a
rigor, promove sociedades secretas com rituais mais ou menos obscuros, venera
fardas e hinos, sob o olhar cúmplice e apaixonado de pais e professores
orgulhosos. Têm as suas bandeiras, os seus símbolos. A academia aceita, desmistifica, moraliza eventuais
atentados à dignidade humana, desinflaciona a dimensão grotesca e bruta da
humilhação iniciática. Afinal, só é praxado quem quer e quem quer gosta,
voluntaria-se se for preciso, está disposto a tudo para poder sentir-se parte
integrante do grupo que há-de promovê-lo à condição de senhor perante futuros
escravos. Assim se cresce e se faz homem e mulher quem nasça no mundo
civilizado. É a tradição, palavra há muito utilizada para desculpabilizar e absolver
todo o tido de atrocidades. O curioso disto está em constatar certo
etnocentrismo encapuçado. As mesmas pessoas que vemos falar das praxes com
orgulho ou simples desdramatização são capazes de apontar com a mais estúpida
insensatez o fanatismo religioso islâmico, os rituais incivilizados da raça
cigana, a violência genética dos pretos, numa prática do preconceito e do
estereótipo cultural há muito enraizada na assoberbada nossa cultura. Ironia das
ironias, o debate actual sobre as praxes acontece na mesma altura em que
investigadores se manifestam contra o desinvestimento do governo na ciência.
Anunciados cortes nas bolsas de estudo, que podemos fazer acompanhar de outros
tantos cortes na cultura e no ensino, são a cereja no topo do bolo deste
retrocesso civilizacional. Ou então não há retrocesso nenhum. Andávamos todos
iludidos e o país continua a ser o que sempre foi desde a sua origem: um
caldeirão de equívocos. Foi um equívoco que nos tornou país, foi um equívoco
que nos tornou messiânicos, foi um equívoco que nos levou às américas, foi por
equívoco que nos julgámos ricos, equivocadamente aguentámos 50 anos de ditadura
e vai fazer 40 anos que vivemos debaixo de um equívoco democrático. O mal que
levámos ao mundo, nós e outros como nós, talvez seja a raiz do problema. Repare-se
como glorificamos as chamadas descobertas sem sentirmos vergonha ou o mínimo
peso na consciência pelos milhões de índios que condenámos à morte e outros
tantos pretos que arrancámos das suas terras para os tratarmos como gado. E dos
tempos coloniais continuamos a falar como quem fala de gelatina de morango. A
História não nos pesa na consciência porque: 1. É passado; 2. O que lá vai lá
vai; 3. Já não me lembro. Esta falta de consciência história é um mal tremendo,
ilude virtudes que não temos e impede, atrasa, retarda o mais importante dos progressos. Um progresso civilizacional que tornasse a corrupção
inaceitável e intolerável, ao contrário da prática generalizada que se faz da
mesma desde o mais banal “chico esperto” aos altos cargos do poder; um
progresso civilizacional que fosse implacável para com práticas desumanas,
venham elas de claques, gangues ou associações académicas; um progresso
civilizacional que não considerasse desperdício o investimento na ciência, na
cultura, na educação, na saúde, pelo menos com a mesma alegria com que estupidamente
aplaudimos a construção desnecessária de estádios de futebol ou exposições
internacionais ou auto-estradas inúteis; um progresso civilizacional que
arrancasse os cidadãos da modorra e da indigência social em que vivem,
extasiados com os feitos dos seus heróis futebolísticos e estupidificados com
lixo televisivo, para os elevar um pouco acima do ilusionismo que os endromina:
exigindo uma democracia de facto, contra as mentiras e a hipocrisia que
alimentam o motor da política e engordam 85 patrões beneméritos à custa da
exploração de 7 biliões de nano-pequenos-médios-escravos agradecidos. Longe disso,
indignamo-nos periodicamente com as praxes como se não fôssemos todos, mas
mesmo todos, responsáveis pelo estado em que estamos, tão brandos que
continuamos a ser com os facínoras que nos vão açucarando a existência à base de gelatina de morango.
2 comentários:
Pois, é isso mesmo.
Pois, e sentamo-nos no sofá a ver os reality shows e as máquinas da verdade
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